Terras da Costa
É junto à arriba fóssil da Costa da Caparica, numa reserva agrícola nacional, um lugar privilegiado do ponto de vista natural, que começou a crescer o bairro Terras da Costa, nos anos 70. Hoje já conta com cerca de 250 habitantes, maioritariamente cabo-verdianos.
Visto de cima, tem a aparência de uma favela, tendo em conta a disposição do espaço em si, onde sobressaem os telhados de chapa de zinco. Visto de dentro é um bairro cheio de vida.
Crianças de sorrisos espontâneos que brincam com toda a liberdade do mundo. Roupa que dança nos estendais ao sol. O verde das hortas comunitárias, que se partilham consoante as necessidades de cada um. Portas abertas sem medos. Um funaná contagiante que se faz ouvir de algumas casas. “Coisas simples, muitas pessoas acham que é preciso ter muito para se viver, é esta nossa simplicidade.”
Durval Carvalho, que se encontra actualmente como Presidente da Associação de Moradores das Terras da Costa, conduz-nos pelas ruas labirinticas do bairro, mostrando-nos a comunidade tal como ela é, e fala-nos do longo caminho que têm vindo a percorrer, para conseguir bens tão básicos como água e electricidade.
As Terras da Costa ganharam alguma projecção mediática quando a Cozinha Comunitária das Terras da Costa, da responsabilidade do ateliermob e do Coletivo Warehouse, venceu o Prémio Edifício do Ano 2016, na categoria de arquitetura pública.
Água é vida
Construída entre Março e Setembro de 2014,a Cozinha Comunitária foi inaugurada no dia 8 de Dezembro do mesmo ano. A intenção foi construir uma cozinha como uma estrutura aberta, que acima de tudo permitiu a chegada de água. Na entrada do bairro, um chafariz, veio mudar a qualidade de vida da comunidade.
Antes da cozinha, a situação era complicada. “Íamos buscar água à praça da Costa da Caparica, depois resolveram fechar aquilo, então começámos a acarretar água no cemitério, tínhamos de atravessar a via rápida, até com crianças, para se trazer o mais possível e não voltar tantas vezes.” Daí acabou por nascer um negócio, pois alguns dos moradores que traziam água em carrinhos de mão, vendiam às pessoas do bairro incapazes de fazer o mesmo trajecto. Infelizmente foi assim durante algum tempo, ao ponto de Durval afirmar que “estava disposto a ser um kamikase, sujeitando-me a ser atropelado e ali resolvia-se qualquer coisa, mas não se proporcionou. Crianças indo para a escolas sujas e a sociedade toda a ver esse “Big Brother”, tirando fotos, curtindo, brincando com a situação, ninguém intervia!”
… E fez-se luz!
Também a energia eléctrica só agora chega ao bairro de forma completamente legal. A obra terá de ficar concluída até ao dia 30 deste mês. “Fizemos um mureto lá em baixo onde fica a caixa que liga o ramal, que foi ligado no dia 11 pela EDP. A Câmara de Almada assegura até à cabine, o ponto de distribuição. Assinámos um protocolo com eles em Abril deste ano, em que temos de seguir umas normas e eles ajudam-nos com a corrente até aqui”. A partir daí, a responsabilidade de levar a energia até às casas é dos moradores, que para isso se juntaram e compraram uma bobina de cabo que vai fazer a distribuição da energia.
Durval mostra-nos a cabine com os contadores para cada uma das 55 casas, com o respectivo número e nome da pessoa, ainda por colocar. Quando questionado se isto irá resultar em termos de pagamento, acredita que sim, “estou esperançoso, agora por ex., acabou de chegar um senhor a dizer que queria pagar. Há moradores que ficaram reticentes porque acham que se vai roubar dinheiro, as coisas vão correr mal, que vão ter de pagar pelo outro. Mas nada como o arranque e começa-se a ver, porque o gerador tem de sair, a CMA já nos ajudou bastante”.
As boas relações com a Câmara são para manter. “Espera-se que tudo chegue a bom porto, queremos cumprir com a nossa parte. Somos cidadãos e munícipes, gostaríamos de colaborar como todos, de estar em pé de igualdade” defende o representante da Associação. “No início, ainda pedimos se fosse possível energia limpa porque estamos numa zona privilegiada, eólica. Podia ser através das universidades, com formações, vinham aqui fazer teste e ensinar-nos como fazer a manutenção e acabávamos por partilhar aprendizagem. Acho que também aprendiam alguma coisa connosco! Tudo isto supostamente, para fazer um bairro novo e transportável, que facilmente se movimenta para outro lado, tanto os telhados como a energia, poupava-se em todos os aspectos. A mão de obra é nossa, não temos problema nenhum com isso. A Junta de Freguesia apoiou-nos com materiais, estamos dispostos a minimizar os custos.”
“É este céu que a gente não gostaria de perder“
A Câmara Municipal de Almada pretende realojar, aqui zona, parte da população do bairro. Mas Durval gostava de poder ficar sempre aqui, é onde se sente em casa. “Estou aqui desde 2000, quando cá cheguei nada aqui era legal, nem nós, nem as casas, nem a água, nem a eletricidade”. Defende que “seja feita uma reabilitação ou um novo tipo de realojamento, que não seja tirando-nos da Costa. Lutamos para se construirem casas rasas, não queremos vive uns debaixo dos outros.”
Mora no bairro com a mulher e os dois filhos, 7 e 10 anos, ambos caparicanos. A casa do Du, como é conhecida, tem um espaço comum para convívio, que pertence a todos. Uma vez que no bairro não existe comércio propriamente dito, Durval tem uma espécie de mini mercearia que vende produtos básicos para as pessoas que chegam tarde do trabalho.
Numa outra casa, um funaná a bom som convida-nos a entrar. Dadá, que ali mora, recebe-nos de sorriso rasgado, no seu mini estúdio de gravações. Dada a boa energia, estava difícil de abandonar o local e seguirmos caminho por outras histórias.
Associação de Moradores
Embora já existisse uma Comissão de Moradores antes, a Associação de Moradores das Terras da Costa conta com 2 anos de existência desde a abertura de atividades nas Finanças. A Associação conta com 9 membros, 3 da Direcção, 3 da Assembleia, 3 da área Fiscal. Esta tarde, por volta das 16h, vão-se reunir para discutir assuntos relacionados com a tal questão da electricidade, “pôr o preto no branco em cima da mesa para que toda a gente entenda o que se está a fazer”.
Esta ideia de organização teve de ser incutida. Durval lembra que “uns professores universitários que passaram por aqui com as Fronteiras Urbanas fizeram alfabetização crítica, autonomia, ensinaram-nos como podíamos fazer uma comissão ou associação, como era bom unir-nos nessa base. Nós também temos os nossos atritos, uns falam mais alto, mas é democracia. Eu quero dizer algo, quero fazer a minha voz ecoar, então porque não? Não somos todos iguais, alguns têm modos diferentes, explodem e depois a gente apanha os cacos. É tudo novo para nós, é uma fase de aprendizagem e que bom é evoluir, espero que para cada vez melhor”.
Uma das causas da Associação é a numeração das casas. “Estes números grandes que a CMA costuma pôr à entrada das casas, achamos uma aberração, uma grande agressão porque há uma forma mais simples de o fazer. Estamos a distribuir estes azulejos pela vizinhança toda com o nº da porta, e são personalizados, cada pessoa fez o seu próprio azulejo”.
O objectivo é fazer-se também uma caixa de correio, ainda inexistente, à entrada do bairro e cada um ficar com a sua chave. Actualmente as cartas são entregues à Dona Rosa, com cerca de 90 e tal anos, que não sabe ler nem escrever, mas está mais presente e vive logo à entrada do bairro. “Passa a moto, deixa as cartas e toda a gente vem aqui buscar. Queríamos que fosse duma forma mais íntima mas ainda não deu”.
“Não sou autoritário nem demagogo, não tenho essa vertente de impor coisas que não sejam para o bem comum”, diz Durval, justificando o seu posto. Jim, o seu cão que nos acompanha praticamente durante toda a volta pelo bairro, desaparece agora para brincar com as cabras da Dona Vitória.
“ As Terras da Costa estavam escondidas, agora estão a clarear”
Dona Vitória, um das moradoras mais antigas, vive no bairro há cerca de 37 anos. A sua pele não deixa transparecer os 70 anos que tem, e o seu sorriso não deixa de nos contagiar. Mostra-nos os seus terrenos, onde o sol penetra por entre os pés de feijão. Sempre trabalhou em agricultura. Agora já se encontra reformada, mas como lhe doaram lotes de terra tem muito com que se entreter, a par de tratar das galinhas, cabras, porcos e patos. “Tenho coisinhas para fazer, tratar da minha horta, da criação, dá para fazer a minha vidinha”. Dá pois! Aqui tem tudo o que precisa, até a água da chuva é armazenada dentro duma velha arca frigorífica e aproveitada para regas e lavar roupa. Dona Vitória gosta de morar no bairro, os seus filhos vivem fora do país, e é no Verão, quando vêm de férias, que tem visitas da família. “É vida, a gente por enquanto não vai morrer, e vai lutando. Quando morrer, olha, vai descansado.”
Em jeito de despedida, falando em crioulo, diz-nos que “as Terras da Costa estavam escondidas, agora estão a clarear”. Seguimos viagem para outras paragens, não sem antes nos fazermos de convidados para uma cachupa um dia destes.
Presente e Futuro
Embora seja inquestionável as mais valias que a Cozinha Comunitária acabou por trazer às Terras, ainda ficaram algumas promessas por cumprir. Segundo Durval, “a obra era para ser inaugurada com água, com ATL, com sede para associação, um parque para as crianças brincarem e ficou só isto que estamos a ver.”
Inicialmente, a cozinha era um autêntico ponto de encontro, todos os fins-de-semana aqui se juntavam. Quando deixou de ser novidade, algo mudou. “Infelizmente houve um grupo que sem noção do que é um espaço comum, faziam disto um espaço para jogar batota, fumaradas, servir de boca à noite. Então abandonei, deixei mesmo de vir aqui.” Felizmente as coisas mudaram e a ideia é devolver-lhe a vida doutros tempos e voltar a dinamizar o espaço, “agora vamos começar a remar para outros lados, com cabeça, tronco e membros para ver o que vai dar, ter uns almoços, uns encontros”.
Esta comunidade não se pretende isolar em si própria, no entanto, como explica Durval “muitos não conseguem ultrapassar esta barreira! Não somos fechados, parece que o Trump já tinha passado por aqui e levantado o muro, sinceramente. Pessoas de lá não conseguem. Os meus filhos fazem anos e não vêm, vou à escola, convido, os amigos não vêm, têm sempre uma desculpa para dar, é chato.”
Quem quiser aparecer no bairro é bem vindo, desde que venha por bem, “desde que não venham colonizar, vindo partilhar, conviver, ensinar, aprender, porque não? Estamos abertos a isso com certeza, desde sempre que fomos assim”.
Depois de conhecer melhor a realidade desta comunidade, que muitos ainda preferem ignorar, torna-se mais fácil compreender Durval quando este, referindo-se à forma livre como vivem no bairro e às lutas já alcançadas, reforça que “são coisas como estas que não gostaríamos de perder!”.
Espera-se então que nesta terra boas mudanças deem à costa!