Do Riso
DO RISO
Lá fora, levadas pelo vento frio, esvoaçavam pelos tristes e escuros caminhos, as folhas da melancolia. Num assombroso abandono, ele olhava o bailado fantástico das chamas e escutava o crepitar da lenha na lareira.
O fogo atraía-o como uma força oculta a que não conseguia resistir e transmitia-lhe imagens que ele associava invariavelmente à dor e ao sofrimento. Talvez, por isso, pensasse que a história do homem tem sido um imenso catálogo de actos de violência e de acidente, em que o fogo tem estado sempre presente.
Porém, animava-o um pouco a noção que tinha de que, embora essas misérias fossem uma constante, a vida é, geralmente, entrecortada por intermitências de alegria e júbilo, que, embora fugazes, dão uma cor mais clara à existência.
Ele pensava isto, por que, bem no seu íntimo, andava a travar uma batalha sem fim contra a tristeza que teimava em dominá-lo, afastando-o paulatinamente da sua antiga alegria.
O decorrer dos anos tinha-lhe mostrado que a vida é mais facilmente suportável se for enfrentada com uma boa dose de alegria, tal como se estivesse a ser vista atrás de um raio de sol. Ele sabia que as circunstâncias, com o peso extraordinário que possuem, poderiam tornar impraticável esta ideia e, até mesmo, considerá-la um exagero, mas estava, deveras convencido de que ela é plausível, se tudo o que o homem fizer for executado com prazer, mesmo as tarefas, aparentemente, mais fastidiosas.
Imaginava como seria triste e aborrecido o percurso de um homem, que não soubesse do prazer, da alegria e, até, daquilo a que os mais sisudos, depreciativamente, insistem em chamar de loucura!
Quem o visse ali, sozinho, naquela penumbra opressiva, procurando aquecer as magras carnes no calor escasso do fogo, jamais suspeitaria que nele houvesse algo mais, além de melancolia e dor. Afinal, que prazer e alegria poderia alguém ter, vivendo como um eremita, num mundo sem convívio e sem carinho?
No entanto, tal pensamento revelar-se-ia um equívoco, pois nas profundezas do seu coração havia inesgotáveis fontes de onde brotava uma tranquilidade constante, que o alegrava, e que ele, como um experimentado vedor, descobria e nelas se saciava. De uma dessas nascentes emanava o prazer, sempre acompanhado pela alegria, sua filha.
Ao longo das suas inúmeras meditações, muitas vezes perdidas em espantosos labirintos, e proporcionadas pela solidão – que era uma condição absoluta e insuperável da sua existência -, ele concluiu que o prazer que imaginava era sempre maior do que aquele que na realidade gozava, e questionava-se: mas, afinal, o que é o prazer e como defini-lo? Não obteve uma resposta pronta para esta indagação, mas chegaram-lhe à memória aquelas que alguns pensadores, durante a História do Homem, procuraram dar para a mesma questão. Dizia um deles: Não existe deleite sem um misto de tristeza; outro, com bastante convicção, afirmava que o prazer é filho da angústia; um filósofo da Grécia Antiga, embrenhado em pensamentos metafísicos, deduzia que o sábio procura a ausência de dor e não o prazer. Talvez todos eles tivessem razão. Não seria ele que os iria questionar.
No seu íntimo sentia que o Homem nasceu para o prazer e isso bastava-lhe, já não precisava de mais provas, limitava-se a pensar que esse prazer não era um fim, mas sim um caminho que conduzia à alegria.
E era esse o caminho que ele iria prosseguir para expulsar a tristeza que, naquele momento, lhe invadia os pensamentos.
Com determinação, desviou o olhar das chamas, levantou-se e foi buscar um velho álbum de fotografias que já não folheava há muitos anos.
Raras eram as suas fotografias de infância, nas quais ele já não se reconhecia, depois olhou as poucas que registaram a sua juventude e, logo começaram a surgir, a um ritmo maior e seguindo a cronologia natural, as fotos que assinalavam o fim da adolescência e o princípio da idade adulta. O elo de ligação que todas tinham consigo mesmo, era apenas o seu sorriso aberto, num mundo que ainda se mostrava luminoso para ele.
Sim, ainda se recordava bem da alegria que nele se manifestava como um sentimento de grande prazer, principalmente quando se encontrava junto das pessoas que julgava iguais. Eram momentos bastante agradáveis em que o encantamento da amizade, soberanamente suave e delicada, crescia pelos desejos e gostos comuns, e se estendia a todo o seu ser e o deixavam com a morna sensação da felicidade. Tinha a certeza de que essa alegria o tornava sociável, ao contrário da dor, que o individualizava e o afastava do convívio com os outros.
Naquela noite, enquanto o vento uivava por entre a ramagem das árvores e, aproveitando o tempo inumerável de que dispunha, resolveu pensar o riso, como uma forma de combater a nostalgia.
Ele via que o riso, um dos principais componentes da alegria, se espelhava no rosto das pessoas e se reflectia no brilho do olhar e na formação da boca, como uma manifestação espontânea de um contentamento que irradiava do interior para todo o corpo e que, muitas vezes, até contagiava os outros. Também tinha reparado que o riso se espelhava de forma diferente no rosto de cada indivíduo, de acordo com a sua idade e com o seu carácter.
Nas crianças, o riso era sempre cristalino e espontâneo. A inocência infantil, ainda não contaminada pelas influências negativas que a sociedade é pródiga a produzir, ri para o mundo e ri juntamente com as suas maravilhas.
Para a criança, o mundo é encanto, e tudo o que vê é igual a si mesma, sejam seres vivos ou não. O fascínio que a própria sombra exerce, ao deslocar-se de acordo com o seu próprio movimento, é motivo de grande contentamento e riso. E a sua pureza é tão grande que, só uma insensibilidade profundamente arreigada pode ficar indiferente perante um belo e luminoso sorriso de criança. Devido às suas leituras de antropologia, ele sabia que, entre os adultos, ainda é possível ver essa mesma pureza entre os povos mais primitivos que vivem isolados e afastados do mundo “civilizado”.
Durante a adolescência, que é por excelência o reino da alegria, o riso é uma constante. Os jovens riem de tudo e o seu riso é contagioso e tende para a gargalhada franca e descomprometida. Com frequência, o seu riso também é jocoso e eles riem-se escarnecendo do ridículo de uma situação ou de alguém; não é rara a gargalhada do grupo motivada pelo tombo desamparado de um amigo. Aqui também a ironia, sempre presente entre os jovens, está muito ligada ao riso e serve para zombar de alguém ou de alguma coisa com a intenção de provocar o humor.
Ele tinha reparado que o riso tendia a diminuir de intensidade nas idades mais maduras, como se fosse uma fuga à despreocupação natural da juventude. O homem adulto, talvez por ter consciência de que a vida já não lhe proporciona tantos motivos para rir, torna-se menos efusivo nas suas manifestações de alegria. Ou, então, julgando-se mais sábio, vê nisso uma contradição com o carácter primordial do riso. De qualquer modo, o riso é mais contido e, nalguns casos, não ultrapassa a forma de um ténue sorriso. Geralmente, é usado apenas como um disfarce da hipocrisia social, ou seja, é um sorriso-máscara, uma falsidade, uma forma polida de integração social e de prevenção de conflitos.
Em situações mais sérias, o riso pode mesmo ser usado como crítica, aliás, reconhecido como a mais antiga e terrível forma de crítica, porque é a mais acessível às multidões. Ou, então, pela sua ausência, isto é, quando não se ouve nem se vê, neste caso é uma manifestação de desprezo, pois, contrariando a fisionomia séria, continua activo e, sem ser notado, gargalha livremente por dentro.
No entanto, ele sabia que, no adulto, o riso não apresentava apenas estas formas menos agradáveis pois, até, a mais comum, é a do riso franco como explosão de contentamento.
Para ele, a essência do riso tinha a ver com o esplendor do espírito. Estava convencido de que o riso era a forma mais favorável de conhecermos o outro. Verificou, com a experiência adquirida ao longo da vida, que as afeições brotam facilmente nesse chão propício e que nada devem ao raciocínio das partes, pois resultam de uma causa fortuita, a que se convencionou chamar simpatia. Se, num primeiro encontro, o outro ri de maneira agradável e verdadeira, é por que o seu íntimo é, seguramente, excelente.
Quando um homem ri, nem que seja uma única vez na vida, já não poderá ser considerado um homem mau. Victor Hugo, o grande escritor Francês, do alto de todo o seu humanismo, dizia que a gargalhada é o sol que varre o Inverno do rosto humano. E é verdade: com uma gargalhada os olhos brilham mais, o rosto distende-se e o ambiente suaviza-se.
Quando rimos alimentamos a amizade. E quando rimos juntos sentimos que é melhor do que falar a mesma língua, é como se estivéssemos num campo espiritual mais puro.
Na penumbra, as chamas da lenha da lareira tinham-se já extinguido e eram apenas brasas, mas ele, alheio ao seu anterior fascínio, sorria agora.
Reinaldo Ribeiro
21JUL2021