Máscaras
Absorto nos meus problemas passeava pelo Hyde Park, numa tarde londrina, quando me acerquei de uma pequena multidão que, no Speakers’ Corner, escutava um orador de discurso enérgico e cativante.
Era um homem jovem, magro, de tranquilos olhos azuis, de longas barbas e de cabelos louros caídos sobre os ombros e presos por uma fita que lhe passava pela testa. As reverberações do sol, tímido, criavam-lhe uma espécie de aura à volta da cabeça que o assemelhava muito à imagem do Cristo difundida pela Igreja. Vestia-se como se vestiam os jovens nos anos setenta: jeans desbotados, ténis e uma T-shirt preta que exclamava em enormes letras brancas: ‘No War!’
Parei para ouvi-lo.
Do alto do improvisado púlpito, perorava contra a violência no Mundo e acusava directamente os governantes das grandes e influentes potências mundiais de todos os males que a humanidade sofre. O seu discurso evoluiu num crescendo quando, a certa altura, citando Aldous Huxley, disse: “uma democracia que faz ou se prepara para uma guerra moderna, apoiada nos seus conhecimentos científicos superiores, deixa necessariamente de ser uma democracia”, para logo acrescentar com emoção “que nenhum país pode estar seriamente preparado para uma guerra moderna, se não for governado por um tirano, à frente de uma burocracia altamente treinada e perfeitamente obediente.”
Estas últimas palavras fizeram com que o seu semblante, até então doce, assumisse uma expressão dura, os olhos faiscaram-lhe como brasas, os lábios estreitaram-se como duas folhas de pergaminho e o rosto endureceu e ficou sombrio como a carantonha medonha de Lúcifer. A plateia aplaudiu-o delirantemente. O seu rosto recobrou o primitivo aspecto sereno. Depois desceu do palanque e seguiu o seu caminho.
Anos mais tarde ouvi as palavras de um presidente norte-americano – cujo nome não quero pronunciar – a mandar invadir arbitrariamente o Iraque, em nome da democracia e em defesa dos valores sagrados do Cristianismo contra a barbárie dos infiéis seguidores do Islão – a quem, com arrogância e com o ar mais seráfico que na demagogia é possível encontrar, chamou de Forças do Mal.
Vangloriou-se, sorrindo, quando acrescentou que o seu objectivo fora alcançado, isto é, que o Iraque fora ocupado e que o seu ditador – conhecido entre as forças ocupantes como Ás de Espadas – tinha sido capturado vivo. “We got him” – exclamou histérico um dos generais – e após um julgamento fraudulento, foi condenado à morte. Foi acusado de possuir nos seus arsenais, incontáveis e letais “armas de destruição maciça” que, além de poderem eliminar todos os seus vizinhos hostis, punham igualmente em perigo o pacífico e desenvolvido modo de vida do mundo ocidental.
Porém, cinicamente, esse presidente não falou dos milhares de mortos que atapetaram o caminho dos invasores; também não falou que o Iraque foi literalmente arrasado; que o deserto iraquiano repousa sobre um oceano de petróleo cobiçado pelos Estados Unidos; que o espólio arqueológico da primitiva e espantosa civilização da Mesopotâmia foi saqueado e perdido para sempre, com a conivência das tropas invasoras. Ele também não imaginou – porque certamente o ignorava – que a democracia não se impõe, nem que a paz se alcança com exércitos invasores em territórios alheios. Ainda assim, os seus subservientes apoiantes, em delírio, aplaudiram-no até à exaustão pela coragem demonstrada ao ordenar a invasão.
Depois eu vi-o na televisão com aqueles olhos simiescos, inexpressivos, e o seu sorriso permanente de desdém, ou de tolo, a comporem-lhe no rosto uma expressão “cândida” – eu chamar-lhe-ia de máscara hipócrita – inalterável, apesar da responsabilidade individual na tragédia.
Foi então que pensei no jovem do Hyde Park. Recordei a súbita metamorfose da sua expressão facial – devido à indignação que as suas próprias palavras lhe tinham provocado – e do contraste que fazia com a deste presidente que, apesar de provocar sofrimento e morte com as suas ordens criminosas, mantinha a sua expressão inalterável, como uma mentira, ou uma alienação.
Qual dos dois estaria a ser sincero: aquele que se indignava com as injustiças, ou aquele que as provocava?
Reinaldo Ribeiro
Almada, 10 de Agosto de 2004