Califa Evasivo

Numa esquina do mundo, com um continente inacessível atrás, um mar profundo e ameaçador à frente e, a seus pés, a confluência de um mar mais ameno onde, na margem oposta, se adivinhavam os vastos horizontes de um imenso deserto inóspito, havia um reino antigo de pequenas dimensões e fracamente povoado. Os seus habitantes chamavam-lhe o cali­fado de Purtgl.

O seu povo, rude, rijo, pouco ligado aos prazeres do espí­rito, mas com uma crença absoluta na divindade, nascera e criara-se ali, longe da cobiça de outros povos ou, talvez, por eles totalmente ignorado. Supõe-se que era o resultado da mistura de primitivos ocupantes oriundos de quadrantes diver­sos e opostos e, por isso mesmo, não se identificava nem com uns nem com outros. Talvez tenha sido o isolamento que o tornou arredio e que uma ancestral amálgama cultural e o receio de afrontar as leis divinas, lhe tenham vincado um certo conformismo. Nunca houve um habitante que se tenha rebelado contra qualquer injustiça, das muitas a que foram sujeitos.

Os califas eram escolhidos dentro do exigente código da hereditariedade e foram, quase sempre, homens rudes e pouco esclarecidos que, aproveitando-se do comportamento abúlico do seu povo, se tornaram déspotas.

Na época em que esta história ocorreu, governava Purtgl um Califa ainda jovem – Çócrt – cujo nome, apontava vagamente para longínquos antepassados Gregos. Era um homem com uma presença agradável, as suas roupas eram manufacturadas pelos melhores artesãos da cidade de Lishbna. Falava mansa­mente, mas com grande loquacidade, o purtgz, a língua nativa do califado – uma língua estranha, de difícil pronúncia, pois grande parte das vogais mudas era omitida –, com provável origem nas línguas de antigos invasores, mas totalmente defor­mada das originais.

O Califa, como os seus antecessores, era arrogante e severo para com os seus súbditos, embora ficasse estranhamente hu­mil­de perante os forasteiros que de vez em quando visita­vam o reino.

Com origem provável nos corredores do seu palácio até surgiu, em certa altura, o boato de que essa humildade se devia ao facto de ele não conseguir falar nenhuma das línguas desses visitantes, devido a uma rara deficiência mental que o incapaci­tava de pronunciar e entender as palavras estrangeiras.

Outro boato que circulava, com insistência, era o de que os seus belos cavalos – de que ele tanto se orgulhava – tinham sido compra­dos a uma tribo bárbara do norte mas que não foram pagos quando os foi buscar, pois, com a persuasão que lhe era peculiar, convenceu o califa bárbaro de que lhos pagaria quando este visitasse o seu palácio em Lishbna. Para que ele não duvidasse da sua palavra, prometeu-lhe ainda algumas das jóias mais preciosas da sua corte, como compensação pelo atraso. Segundo o relato de um vizir desavindo com ele, os maravilhosos cavalos nunca foram efectivamente pagos, apesar das várias visitas que o soberano bárbaro fez ao reino de Purtgl para lhe exigir o cumprimento da palavra dada. Porém, com alguma surpresa, este nunca se mostrou agastado com o incum­primento de Çócrt porque sempre levou consigo, a cada vinda a Lishbna, uma parte substancial dos tesouros do califado, num valor muito superior ao valor dos cavalos.

Pairava sempre sobre os telhados do palácio uma estranha nuvem de mistério que tudo filtrava do que se passava dentro das suas paredes. Nada transpirava sobre os seus ocupantes, do que faziam, do que conversavam entre si, da forma como viviam e, muitas vezes, até de quem eram.

O Califa Çócrt ascendeu à posição cimeira do reino, tal como todos os seus antecessores, através do fluxo morno, mas poderoso, da hereditariedade.

Ele pertencia à família dos Çuçlsts, uma das duas famílias mais poderosas do califado que, em tempos, tinha ostentado no brasão um punho e um punhal, substituído depois por uma rosa. A outra família era a dos Psds, palavra impronunciável que significa laranja, e que apenas se distingue dos Çuçlsts pelo facto dos seus membros serem todos grandes apreciadores daquela fruta. As duas famílias, através de um acordo, que os livros de História um dia revelarão, sempre governaram o cali­fado de forma alternada mas concertada. Exploraram, ambas, em proveito próprio, com promessas e mentiras a proverbial ingenuidade do povo de Purtgl. Este, inexplicavel­mente, sem­pre as aplaudiu com igual entusiasmo, como se uma poção misteriosa lhes fizesse esquecer as agruras anteriores, que tanto os Califas de uma família quanto os Califas da outra os obrigavam a suportar. Os sábios do reino, perplexos, interro­gam-se até hoje sobre a origem de tal encantamento.

Como nada se sabia da vida do califa comentava-se, à boca pequena – e a voz do povo é pérfida – que ele era dono de uma incompetência inata para fazer qualquer coisa. Ninguém lhe conhecia méritos pessoais nem provas dadas anteriormente ou qualquer obra por si realizada. Dizia-se até – e isto só podia ser um exagero motivado pela inveja popular – que ele pagava, generosamente, aos doutores das leis, aos físicos e a todos os que lhe deveriam dar instrução, para que apregoassem pelo califado os seus dotes intelectuais, mesmo que ele nunca tivesse estado a ouvir os seus sábios ensinamentos.    

Num dia de Abril, a natureza preparava-se para explodir em cor e alegria, apesar das nuvens negras que ainda pairavam ameaçadores no céu, quando chegaram a Lishbna três misterio­sos viajantes estrangeiros. Foram vistos, várias vezes, entrando e saindo, sorrateiramente, do palácio do Califa pela porta de acesso aos aposentos do tesouro.

A sua presença despertou imediatamente a atenção dos alfcins, nome por que eram conhecidos os habitantes de Lishbna. Os boatos não tardaram a correr pelas ruas estreitas e tortuosas da cidade. Uns diziam que eles eram mercadores de artigos exóticos, talvez ilusões, um produto artesanal, barato, que o próprio Califa se encarregava de distribuir prodigamente pelo povo; outros afirmavam que os estranhos andavam a ver as fragilidades do reino, para que os seus próprios Califas pudessem invadir e dominar facilmente Purtgl; outros, princi­palmente os feiticeiros, que tinham o condão de prever o futuro, diziam que aqueles homens vinham em missão de usura, uma prática então muito em voga ou, ainda, que vinham apenas co­brar, uma vez mais, os cavalos do Califa.

Fosse qual fosse a verdade, a única coisa que parecia certa era que sempre que os misteriosos visitantes tinham vindo ao reino – já era a terceira vez que o faziam em poucos anos – os Califas, exigiam mais sacrifícios ao povo. Obrigavam-no a pagar impostos absurdos e excessivos e a despojar-se de grande parte dos parcos bens que possuía, até mesmo dos cereais guar­dados para o Inverno e até dos seus animais. A fome alas­trava então pelo reino e as populações abandonavam os cam­pos. O abatimento era geral e todos os olhares se voltavam para o Califa, o seu senhor, o único que os podia livrar da miséria e dos sofrimentos.

Desta vez, o Califa Çócrt, homem de muitos artifícios, cha­mou os representantes das famílias Psds e Cdspp – esta a terceira grande família do reino, que se caracterizava por ser profundamente religiosa – para ouvirem o que as misteriosas personagens lhes queriam dizer. Conversa­ram, longamente, no mais absoluto recato dos recessos ignorados dos aposentos ricamente ornamentados do palácio, sobre assuntos demasiado importantes e trans­cen­dentes para a imaginação popular.

Os alfcins interrogavam-se, num misto de curiosi­dade e receio, sobre o teor daquelas conversações, mas nada lhes era explicado.

Alguns dias depois da partida dos estrangeiros, Çócrt mandou reunir o povo na praça maior da cidade. Este, obediente, acorreu em massa e, ansioso, aguar­dou para ouvir, num respeitoso e nervoso silêncio, o que o Califa lhes queria dizer. Todos receavam que ele lhes fosse pedir os habituais sacrifícios para satisfazer a voracidade dos estranhos bárbaros.

Para surpresa e alegria geral, o Califa limitou-se a perorar sobre tudo o que não iria exigir do povo. Embalado numa onda de magnanimidade, acrescentou ainda que os boatos que circulavam em Lishbna não tinham qualquer fundamento e que todos podiam continuar a viver despreocupadamente sem qual­quer tipo de receio, pois o seu Califa zelava por todos com a habitual abnegação. Após uns segundos de estupefac­ção, a po­p­ulação, em delírio, louvou o seu bom Califa, o homem que evitou os males maiores que os estranhos lhe poderiam trazer.

Da janela do palácio, e rodeado pelos seus vizires, o Califa Çócrt, verdadeiramente emocionado, sorria com deleite, en­quan­to agradecia as aclamações da populaça, prometendo continuar a servi-los por muitos e muitos anos.

Houve muita alegria, muita festa e muitos jogos de entre­tenimento entre os purtgzs agradecidos e, até uma deusa menor deu a sua contribuição com um milagre inesperado. As apreen­sões sobre os possíveis sofrimentos desvanece­ram-se com a rapidez de uma nuvem no céu de um dia de Verão e a necessá­ria brandura dos costumes manteve-se inalterável.

Conta-se que, naqueles dias, apareceram pregados nas árvo­res da cidade alguns pergaminhos escritos numa língua tão estranha, que ninguém os sabia ler. Os sábios do reino debruça­ram-se com curiosidade e dedicação sobre o insólito pregão. Se o conseguiram traduzir, ninguém sabe.

A história ainda é omissa quanto ao conteúdo daqueles miste­riosos pergaminhos, mas o povo, maldoso e ignorante, logo espalhou o boato de que eram as medidas severas que os três sombrios forasteiros ordenaram que fossem cumpridas e que o Califa Çócrt prometeu que não iria tomar contra o seu povo…

Reinaldo Ribeiro

25/5/2011

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