Velhos Remédios
Na segunda-feira, ciceronei um amigo de terras distantes que veio a Lisboa. Queria apresentar-lhe alguns dos museus da nossa capital. Gosto muito de museus porque eles estão recheados de coisas “velhas” que fazem a ponte para as coisas “novas” do nosso quotidiano consumista. Elas ajudam-nos a compreender como evoluímos e, em certos casos, como involuímos.
Mas, desgraçado de mim! Às segundas-feiras todos os museus estão encerrados. Todos não! Há um que permanece aberto! É o Museu da Farmácia, situado junto do Miradouro de Santa Catarina, guardado pelo Mostrengo, o terrível Adamastor.
Beneficiando do desconto concedido aos seniores, entrámos. Só os dois. Não havia mais visitantes. Calmamente, deambulámos pelos dois pisos que ostentavam milhares de velhos artefactos com que outrora se tratava da saúde às criaturas de Deus.
A pretexto de protelar a morte, os humanos inventaram remédios, criaram supersticiosas crenças e incutiram nos doentes o otimismo das curas. Numa escassa hora, que foi quanto demorou a visita, viajámos milhares de anos, desde o faraónico Egipto, passando pelos aztecas, maias, tibetanos, chineses, hindus, gregos e romanos, até chegarmos ao século XIX, início da revolução laboratorial com a chamada química de síntese. Vimos o nascer da farmacopeia industrial que deu origem às grandes multinacionais que hoje “cuidam” da nossa saúde. Entretanto, ficaram na nossa retina aqueles objetos antigos que hoje já não se usam: pós dentífricos, rebuçados peitorais, biberões, tira-leites, cremes banha-da-cobra, potes para unguentos, albarelos, frascos piriformes e prismáticos, boiões ovoides, preservativos de pele de porco, vasos de botica esmaltados com curiosas decorações, bacias para sangrias, açucareiros (o açúcar era um remédio, sabiam?), caixinhas com cremes de embelezar e esconder a velhice, vasilhas para o pó de corno do unicórnio, irrigadores, pulverizadores, almofarizes de bronze, de mármore, de marfim, destiladores de essências, seringas para clisteres, equipamentos para o fabrico de pílulas, equipamentos para o fabrico de hóstias, autoclaves, lixiviadores, alambiques, uma enormidade de balanças, pesos e medidas para canadas, quartilhos e onças, embalagens de remédios contra as sezões, para dar vigor ao cabelo, para a fraqueza, para a tosse, o peitoral de cereja do Dr. Ayer, a água da Florida, a tintura de cânfora, as pílulas catárticas, o óleo de fígado de bacalhau, o extrato de salsaparrilha, a água oxigenada pura, o Sanogenol, poderoso tónico, o Lysine, desinfetante que não tem cheiro e tira o mau cheiro, o Depuratol, a única tábua de salvação dos sifilíticos, o Uraseptyl para dissolver o ácido úrico, o Ferro-Quinol para levantar as forças caídas, o Plasma Phosphatado para a tuberculose, o Neurinase para as neurastenias, o Salutaris, grande água purgativa, o Quinado para a falta de apetite, o Ceregumil, alimento vegetariano completo.
Uf! Valha-nos agora os grandes laboratórios que inventam doenças, inventam medicamentos, tornam a inventar, tornam a reinventar, manipulam organismos geneticamente modificados e sugerem, recomendam, prescrevem, exigem para tomar, chupar, engolir, deglutir uma panóplia de novos remédios que curam, que preservam, mas também moribundam e matam, tudo em suprema adoração do novo deus que domina o mundo: o deus dinheiro.
Abaixo as coisas velhas! Vivam as coisas novas!
Miguel Boieiro