A Cidade dos Vulcões

Arequipa é a segunda cidade mais populosa do Perú, com cerca de um milhão e 300 mil almas e corresponde também à sua segunda economia. É referida como a capital legal por ser sede do Tribunal Constitucional.

Disseram-me que os seus habitantes se consideram primeiro “arequipeños” e só depois peruanos. Portanto, é também a capital do amor próprio.

Foi fundada em 1564 por Pizarro com um daqueles nomes que se usavam na altura: “Cidade da Linda Nossa Senhora da Assunção”. Ao longo do domínio espanhol, sempre se demonstrou completamente  leal à coroa, porém, depois da implantação da república, foi também a primeira a fazer eclodir rebeliões e até revoluções. É em Arequipa que as revoltas peruanas começam…

Ao seu redor estão três vulcões, sendo o maior, Misti, ainda ativo. Os outros dois, na verdade grupos de vulcões, o Pichu Pichu e o Chachani, consideram-se inativos, porém, sendo os vulcões, reconhecidamente,  feras temperamentais, nunca se sabe…

Plaza de Armas com a Catedral Basílica ao fundo

O centro da cidade, considerado Património da Humanidade pela UNESCO, organiza-se em torno da Plaza de Armas, seguindo a tradição espanhola, e esta estende-se aos pés da Basílica Catedral, com a sua escadaria onde turistas descansam e os vendedores ganham a vida.

À volta da praça, numa ala de traça colonial, diversos empreendimentos turísticos, principalmente restaurantes, agências de viagens, lojas de lembranças e mercadinhos com consumíveis de primeira necessidade, como imanes para frigoríficos…

Estas lojas ficam nas arcadas do nível térreo, enquanto os restaurantes servem nas mesas situadas nas amplas varandas do primeiro andar, sobre as arcadas e pensadas para saborear toda a praça e, sobretudo, todo o movimento em redor.

Nestes restaurantes, o prato tradicional arequipeño, Rocotós Rellenos – outro tipo de vulcão – pode ser desgostado com a cerveja Arequipeña (claro), que proclama: “todo o Arequipeño que se preza tem um vulcão no coração”. Neste caso, no prato também.

À sombra, mulheres vestidas tradicionalmente – as famosas Cholitas – de roupas vistosas e coloridas, com os famosos chapéus, uma espécie de cruzamento entre o chapéu alto e o de coco, são mulheres jovens – mais umas que outras – provenientes das etnias Aymara e Quechua (foi aqui que a Decathlon se inspirou) – e que se situavam primeiro, principalmente na Bolívia, mas que, devido ao seu sucesso turístico, acabaram por ser adotados um pouco por toda a região andina.

Como dizia, à sombra, sentavam-se com bebés alpacas ao colo, atraindo os turistas para a festinha amigável no bicho, com uma foto, a troco de alguns pesos. A alpaca, na verdade um camelídeo, é mais pequena do que os Lamas. Infelizmente para elas, têm também a carne mais tenra, razão pela qual, além do colinho das cholitas, acabam frequentemente no prato do almoço. Ainda por cima, a lã do seu pelo faz as camisolas mais procuradas no Perú e em todo o mundo.

Os quatro camelídeos mais famosos dos Andes são os Lamas e as Alpacas, as espécies domesticadas, além das Vicuñas e Guanacos, espécies selvagens que raramente são vistas por nós, turistas.

Catedral Basílica num outro ângulo

Quanto à Basílica Catedral, que domina um topo da Plaza de Armas, apesar da sua imponência e centralidade, não é o monumento mais popular, mas não faltam as filas de turistas à espera de vez e com uma sombra e sossego (apesar de tudo) deliciosos.

À volta da nave principal, inúmeros quadros e figuras descrevem os santos, santas e as cenas mais famosas, com as capelas e as caixas de esmola do costume, ornamentadas pelas imagens sofredoras e violentas tanto ao gosto católico.

A Basílica começou a ser construída logo após a fundação da cidade, no século XVI, mas foi destruída uma dezena de vezes devido aos inúmeros e violentos terramotos (além de um incêndio), sendo de imediato iniciadas as obras de reconstrução.

A versão que conhecemos é a de meados do século XIX. No entanto, também esta teve de ser reparada várias vezes, sempre devido a sismos – consequências dos vulcões circundantes – a última das quais foi o resultado do forte abalo de 2001 que determinou as obras de reparação que terminaram em 2002, no aniversário da fundação da cidade. Porém, provavelmente a história não acabará aqui.

Nave central da Catedral Basílica

Curiosamente, os vulcões que destroem as construções de Arequipa, incluindo a Catedral Basílica, são também os que fornecem o seu material principal – o “sillar” – uma pedra vulcânica, principalmente de andesite.

Serve esta história como exemplo da perseverança e resiliência do ser humano. Contudo, dizem os seres de pouca fé, que podiam ter escolhido outro sítio para fundar a cidade…

Além da Basílica, e talvez até mais famosa do que ela, fica a Igreja da Companhia, que se refere, claro, aos Jesuítas, a quem mais?

Apesar de ser nomeada como igreja, trata-se de um mosteiro, amplo e complexo, com diversas edificações, pátios e jardins. A sua fama deve-se às obras de arte, a maior parte da denominada Escola de Arequipa, que aqui teve início, e se inscreve no que se convencionou denominar como Barroco Peruano.

Recipientes para captar água da chuva na Igreja da Companhia

Na minha opinião, nada podia ser mais barroco, no seu fundamental “desconcerto do mundo”, do que a própria terra tremer tanto que destrói tudo o que os humanos constroem.

Recordei, enquanto percorria as suas dependências, corredores e átrios, os textos de Cadornega em Angola, também sobre tal desconcerto, quando referia que em vez dos homens comerem as bestas, eram por elas comidos.

Em alternativa às visões eclesiásticas, formais, sóbrias e, na sua visão, edificantes, resolvemos visitar o Mercado de San Camilo, que, pelo contrário, celebrava a vida quotidiana, no seu característico caos.

Lá encontramos as vitualhas do costume, os tabuleiros com as várias dezenas de espécies de batatas, as várias dezenas de espécies de milho, incluindo as gigantes, de resto, tal como os chapéus de palha com abas de quase um metro para cada lado. Artigos religiosos também, mas de cariz popular, que incluía mezinhas, amuletos e unguentos, mas não tinha o fulgor que encontrámos depois na Bolívia, que incluía excentricidades (para nós) como fetos de alpaca, tudo prontinho para queimar logo ali à porta.

A Juanita

Num outro antigo edifício eclesiástico, onde agora funciona a Universidade Católica de Santa Maria, que alberga o Museu dos Santuários Andinos, está exposta a múmia Inca de uma jovem que teria 10 a 15 anos na altura da sua morte, em meados do século XV.

A múmia, descoberta numa expedição ao Monte Ampato em 1995, tem sido extremamente fecunda na informação que proporcionou através das análises científicas que têm sido feitas e que lhe garantiu um lugar nas 10 mais importantes descobertas, segundo a Time Magazine.

Batizada carinhosamente como Juanita, Senhora do Ampato ou Senhora do Gelo, é um centro de atração, e não só para turistas. Na verdade, tem corrido mundo sendo exibida em diversas capitais, como Washington, incluindo também um tour inteiro pelo Japão.

A sua morte sacrificial, dedicada aos deuses Incas, foi extremamente violenta, conforme determinado por extensos exames ao seu crânio. A cerimónia, denominada Capacocha, consistia, resumidamente, numa forte pancada lateral na cabeça, o que, consequentemente, veio a determinar a atual reconstrução do crânio.

A Outra Tourada

Nas arcadas da Plaza de Armas comprámos duas visitas, uma das quais incluía uma visita ao Museu Menelik que, como nos foi então explicado, celebrava a tourada e o seu mais famoso touro.

Pensei de imediato no meu amigo Zuzarte, corajoso líder dos forcados de Montemor e atual Presidente da Assembleia Geral da Associação Gandaia, além de famoso e laborioso entomólogo que recentemente foi tema das páginas do Público, em virtude da sua doação da extensa coleção pessoal de insetos devidamente catalogados – o trabalho de uma vida inteira – ao Museu da Faculdade de Ciências.

Menelik, o touro gigante

Não podia estar mais enganado.

O tal touro Menelik, tornou-se célebre por vencer todas as touradas, sim, mas nada a ver com as nossas. Aquelas eram lutas entre touros e o Menelik era um gigantesco mamífero que venceria um camião TIR, quanto mais outros bovinos.

O museu figurava, além de uma réplica em tamanho real do boi, a qual se podia até montar, uma série de fotos, de cartazes e memorabília que celebrava a vida e carreira do tal magnífico bovino, além de uma estátua de bronze em tamanho real.

Fascinante, não só o Menelik, como o culto que gerou à sua volta. Já tinha visto heróis de lutas de galos, de pássaros e até de grilos, mas destes, foi a primeira.

O Vale dos Condores

A outra visita que comprámos foi ao Vale do Colca, já de grande altitude e que tinha como atrativo principal os condores, passarões de majestosa envergadura.

Começou muito cedo, pelas 5 da manhã e incluía uma primeira paragem para um pequeno almoço, mais do que frugal, numa aldeola adormecida no meio dos Andes.

A altitude tem um efeito dramático e devastador. Saí enquanto decorria o pequeno almoço, sempre mascando folhas de coca, indo à procura de algum recipiente na única rua do local, onde apenas uma porta estava aberta. Era uma loja. Os deuses sorriam-me, sem dúvida.

Na loja, com o tal “tudo e mais não sei quê”, além de tachos e panelões, lá encontrei, numa prateleira esconsa, diversos termos, uns chineses, com cores berrantes e uma volumosa asa, tudo revestido a plástico, muito inconveniente para viajar, mas, lá meio escondido na prateleira, uma coisa tubular, revestida a couro, ou imitação dele, com ar maneiro. Parecia um termo, e era mesmo.

Os condores passam…

Voltei ao restaurante e enchi-o de chá de coca. Somando às folhas que a guia fornecia paulatinamente aos passageiros. Acabou sendo um antídoto poderoso, paliativo para os sintomas da altitude, que nos acompanhou no resto da viagem.

Claro que vimos condores, vários e em variadíssimos locais, uns voando mais alto que outros. O que me surpreendeu foi a quantidade de pessoas que se vestiam de condor e dançavam para os turistas assim que as camionetas paravam.

Nas rulotes que vendiam tudo, incluindo penas de condores, miniaturas de condores, DVD de condores, como seria de esperar, lá estava, em som alto, demasiado alto, a música “El Condor Pasa”, celebrada por Simon & Garfunkel, que afirmava que antes queriam ser um martelo do que um prego… Que surpresa.

E os condores, indiferentes às câmaras e às suas réplicas dançantes, aos turistas boquiabertos, aos vendedores, às bugigangas e ao folclore, planavam entre os picos do canyon, vertiginosos, vogando nas correntes de ar das alturas, majestosos. E passavam.

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