A Estrela do Deserto

A Estrela do Deserto é uma unidade hoteleira que se situa no Oásis de Tighmert, um palmeiral da Comuna de Azrir, a cerca de 17 Km de Guelmin.

Uma tenda para as refeições no pátio central da “Estrela do Deserto”

Ao procurar pelo oásis de Tighmert, sentia-me um caravaneiro de outros tempos, palmilhando desertos sem fim, de oásis em oásis. Desta vez, para ser rigoroso, a demanda era, mais precisamente, “A Estrela do Deserto”, e não o oásis, e que realmente estava assinalada – e bem – nos locais mais adequados, de forma a facilitar a viagem até à sua porta. Meu rico GPS!

Quando a sinalética apontou para um caminho de terra batida, confesso, que o coração se me apertou, uma vez que tinha alugado o veículo mais extraordinariamente adaptado para esta exigente demanda: um Fiat Panda. Mas a verdade é que cumpriu, sem sequer um furo, ao longo dos 1500 Km de toda a nossa viagem. De camelo teria sido bem mais difícil.

Quando demos por ela, seguindo escrupulosamente as indicações, estávamos mesmo em frente ao nosso destino: uma casa em adobe, no ocre tradicional marroquino, de traça quadrangular, com quartos em torno de um pátio central, onde estava montada uma tenda, devidamente atapetada, para as refeições em jeito Tuaregue, tal qual o Lawrence da Arábia… mas em Marrocos.

À nossa espera estava Nordine, um matulão com dois metros, de uma simpatia e paciência ilimitada. Era ele o rececionista, cozinheiro, empregado de limpeza e, imagino, que bem falado, chefiaria uma caravana até Tombuctu. Pelo menos.

Depois de arrumar os pertences no quarto, perguntei a Nordine pelas opções de comida. Ele, habituado a explicar o mesmo a todos os hóspedes, detalhou que era necessário encomendar com antecedência. Muito bem, mas encomendar o quê? Tajine de Camelo, foi a resposta. Confesso que estremeci.

Quando pensei melhor sobre o assunto, já refeito do choque inicial, na verdade, não encontrei razões substantivas para comer vacas, carneiros, cabras, galinhas, patos, cangurus e avestruzes… mas não camelos. Porém, não sei se foi pelo olhar doce e ruminante que os dromedários me lançavam do alto do seu pescoço… mas como é sabido as vacas também deitam olhares doces, ruminantes e, até dizem, que felizes mas não se livram de fornecer os belos bifes que alegremente aterram no meu prato. Enfim, camelo é que não.

Nordine registou.

Nas consecutivas viagens ao portentoso Fiat Panda pelas malas, mochilas e o imprescindível e inseparável garrafão de água, reparei que mesmo em frente estava, desafiante, o Museu da Casbah de Caravanserail.

Casbah significa fortaleza e aquela fortificação realmente impunha-se e cumpria a sua tarefa de alardear a ideia de que aquele era um lugar seguro para a pernoita. Na verdade, todo aquele oásis foi, durante séculos, um imenso caravanserai.

José Saramago chama-lhes caravançarai, no Evangelho Segundo Jesus Cristo. Na parede do museu estava “caravansérail”. Perante o imbróglio, optei pela grafia do famoso álbum de Carlos Santana, o seu quarto, não só porque admiro o músico, como por nada ter a ver com esta história, sendo assim completamente imparcial. Privilégios de autor, pronto.

Seja como for, mesmo em frente à porta da Estrela do Deserto impunha-se o Museu da Casbah do Caravançarail. Como se pode ver pela foto, uma edificação que transpirava poder (e segurança) por todos os lados.

Caravançarail, apesar da grafia, assinalava que ali, na verdade em todo aquele oásis, ainda não há muitos anos, se podia encontrar aquela instituição secular de hospitalidade para caravanas e outro tipo de viajantes. Como depois viemos a saber, foi determinante como base local dos Ralis Dakar quando a sua rota ainda incluía Marrocos.

Dromedários na famosa feira de camelos de Guelmin

Decidimos guardar o museu e o oásis para o último dia da nossa estadia e dedicar-nos  primeiro a Guelmin. Na verdade, precisávamos de várias coisas de uma cidade, desde logo, imprimir os “boarding pass” porque no aeroporto de Agadir só os aceitavam em papel e lá não tinham onde imprimi-los…

Guelmin sempre foi famosa como “Porta de Entrada do Deserto”, título que serve a várias outras localidades marroquinas, a começar por Marraquexe ou Taroudant. Porém, neste caso, é (também) realmente merecido, apesar de não ser tão conhecida entre nós.

Esta cidade é realmente o ponto de partida – e chegada – para atravessar o deserto e chegar aos locais que, entretanto, fomos considerando distantes, apesar dos meios de transporte de que agora dispomos nos permitirem alcançar rapidamente qualquer destino.

Assim, nos vetustos antigamentes, consideravam-se ligadas a Guelmin cidades não só longínquas como míticas e até proibidas. Presentemente, quando dispomos de aviões, jipes, etc. já não as consideramos partes de uma mesma rede. Parece contraditório, mas a realidade tem destas coisas.

Por exemplo, Guelmin está diretamente ligada a Tombuctu, e já vimos no caso de Tarfaya, que não é a única cidade marroquina com essa ligação.

Falamos de épocas em que o mundo não tinha fronteiras, especialmente este mundo desértico, feito de vastidão sem grandes pontos de referência, em que as viagens se faziam de oásis em oásis. Mas onde estavam eles no mar de areia do deserto?

Essas viagens dependiam de dois fatores: os saberes tradicionais dos caravaneiros, que liam as estrelas e as ondas do deserto, e a capacidade dos camelos da cáfila para encontrar água. Cáfila, que não é um impropério nem uma invetiva, antes um substantivo coletivo de origem árabe que significa… caravana.

Temos, assim, uma rede de contactos longínquos feitos lentamente, passo a passo, pelas areias escaldantes do Sahara às costas dos fiéis e dóceis dromedários. Desta forma lenta e penosa fluíam os produtos de um para outro lado. As caravanas, não só estas, permitiam o contacto entre mundos que se julgavam isolados, mas que a arqueologia tem vindo a desmentir.

Acontece que ainda hoje Guelmin é o local ideal para comprar camelos. Não sei se o leitor estará interessado, mas pode aqui comprar um ou uma cáfila inteira, se assim o desejar. É aqui, todos os sábados, que acontece o maior mercado de camelos de toda Marrocos. Quem diz camelos, diz burros, cabras, ovelhas, galinhas, patos ou periquitos.

Pronto, inventei os periquitos, mas também não vasculhei a feira toda…

O palmeiral do oásis de Tighmert

Guelmin é uma cidade com ruas amplas, várias mesquitas, o que é natural, claro, restaurantes variados, com ou sem assadores à porta, cafés, padarias, pastelarias e, curiosamente, vários armazéns de artigos de utilidade, além de bibelots diversos, quase todos de fabrico chinês. Esto é o sinal indesmentível e evidente da tal essência de entreposto de deserto.

As ruas, com muitos transeuntes, denunciavam uma demografia a que não estamos habituados. Vários colégios de mamãs à porta, como seria de esperar, demonstram que as pessoas na rua não são visitantes, mas sim residentes. É impossível não comparar com Portugal. Estaremos a morrer como país?

Compras feitas e serviços adquiridos, de volta à Estrela do Deserto, fomos finalmente passear pelo oásis, pelo palmeiral em torno do leito seco de uma ribeira.

As palmeiras e a produção de tâmaras de Tighmert há muito que estavam sentenciadas. A doença fúngica bayoud, que ataca as palmeiras produtoras de tâmaras, condenou a produção desta zona à alimentação para gado. Mas plantações de outras agriculturas verdejavam graças a furos, imagino. Porque à vista… água nenhuma.

Quanto ao museu, afinal, superou as expectativas e era muitíssimo interessante. Apanhámos Abdou – dono e guia – meio desprevenido, a aprontar a saída, mas nem por isso deixou de ficar feliz pela nossa visita. Curiosamente Abdou tinha uma espécie de tique oral (ou seria estratégia discursiva?) que o fazia gritar a penúltima sílaba, seguida de uma risada. Se a ideia era fazer-nos prestar atenção, resultava perfeitamente.

Abdou, dono e guia do Museu

Explicou-nos Abdou que fora seu pai a fazer a conversão do local num museu, após gerações a explorar o caravanserai. Pelas paredes, prateleiras e pequenos móveis, uma infinidade de objetos transportava ondas de visitantes de um passado sem conta.

Alguns trajes caracterizavam as origens das caravanas: “estes são do Mali”, dizia Abdou, “aqueles da Argélia, que é já aqui ao lado e naqueles tempos não havia qualquer fronteira, mas estes são de ainda mais longe”. O mais longe, pelos vistos, era de um algures difuso, sem local preciso.

Os caravanserai tinham como regra a discrição, naturalmente. Agora, pede-se passaporte à chegada.

Porém, se muitos dos objetos do espólio estavam claramente ligados às caravanas, como potes e panelas, freios e selas de camelos, cadeados e até espingardas, outros não faziam qualquer sentido, como rádios antigos, por exemplo. Onde encontrariam eletricidade no deserto? “Não, não”, esclareceu Abdul, “tenho vindo a comprar algumas velharias para enriquecer o musEU, eheheh”…

No fim de tarde no palmeiral, impunha-se o chá de hortelã. Na verdade, era chá verde porque a hortelã se tinha acabado, chá tomado num imenso sofá acolchoado a cimento e coberto de tapeçaria e com uma pequena mesa ostentando um manancial de joalharia de verdadeira origem berbér feita na China. Mas não as histórias de Abdul.

 

 

 

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