A Ilha da Simpatia
A ilha de Bali faz parte do grupo de ilhas de Sunde, na Indonésia, o maior país muçulmano do planeta. Maior em população, a Indonésia tem quase 280 milhões de almas e é o maior país arquipélago com 15708 ilhas.
Neste panorama, Bali destaca-se por ser a única ilha predominantemente hindu dos milhares de ilhas da Indonésia. É também a de maior simpatia e com mais profunda cultura de acolhimento. Mas o interesse não se fica por aqui. Mas já lá vamos…
Normalmente, chega-se a Bali pelo aeroporto de Dempasar, a capital. Uma cidade completamente virada para o turismo, mas sem perder ligação à sua cultura e sempre dedicada a fortalecê-la. Em Bali a cultura é rei.
Não é fácil sair do aeroporto. Normalmente faz-se o visa logo ali e com isso demora-se mais de uma hora para vencer as vagas de turistas – todos desejando a miraculosa carimbadela no passaporte – desejosos de partir de imediato para a praia.
Ora as praias de Bali não são maravilhosas e inesquecíveis. No entanto, quem passa horas e horas a voar para lá chegar está programado para, após o castigo do exíguo espaço nos aviões e a já referida espera na sala de embarque, já no intenso abraço do calor húmido que caracteriza estas paragens, bem, depois disso, um alguidar com areia no frescor da brisa marítima é, por definição, uma praia maravilhosa e inesquecível.
Não são, de facto as praias que atraem pessoas de todo o mundo. Para muitos são as ondas. Como não sou surfistas não posso elaborar muito sobre as qualidades das ondas de Bali. Porém, o seu maior recurso são as suas pessoas, especialmente a sua simpatia e, sobretudo, o seu sorriso. Um acolhimento quente e empático que não encontrei em mais lado nenhum, mesmo na Tailândia, se bem que por pouco.
A praia em Dempasar é vasta, as águas são tranquilas e mornas. A areia é de um cinzento escuro e está enxameada por metade da população do planeta. Ao fim do dia, tudo vem passear à praia. Não só os turistas.
Visitei Bali no caminho de Timor, quando aquela martirizada meia ilha ainda recuperava da destruição do final da ocupação indonésia. Era um paraíso de abundância em comparação com Dili e mais ainda com o resto do novel país.
Antes de partir de Lisboa, num jantar romântico de despedida, convidei a minha Isabelinha para um jantar no Poppies, uns meses depois e entreguei-lhe o bilhete de avião. Era um pouco distante mas garanti que lá a esperava no aeroporto. E assim foi. Lá estava eu, esperando a chegada do seu sorriso contagiante.
O programa da viagem era variado mas, como sempre, muito limitado pelas contingências do trabalho que ficara em suspenso.
Depois da descompressão na piscina do hotel e o prometido jantar, depois da noite bem dormida e a piscina do hotel (pois, já tinha dito, mas as visitas foram realmente frequentes), a primeira visita estava destinada ao templo de Uluwatu, a cerca de meia hora de viagem de Dempasar e com imensas oportunidades de transporte. Na verdade, tínhamos de enxotar os variados e inúmeros proponentes desta viagem que apareciam de onde e quando menos se esperava.
O Templo de Uluatu, de seu nome completo Pura Luhur Uluwatu, em que Pura significa templo e Luhur identifica a sua origem divina é simplesmente divino, tal como prometido, desde logo pela sua localização num magnífico promontório numa alta falésia sobre o Pacífico.
O templo é famoso, não apenas pela sua localização única, mas pela diária celebração da dança Kecak, uma peça extraída do poema épico Ramayana. Neste caso, o episódio em que a esposa de Rama é raptada e este, com a ajuda de Hanuman, o rei dos macacos, a recupera.
O espetáculo é realizado no fim da tarde, permitindo aos sempre numerosos espetadores que esgotam o anfiteatro e disfrutam não só do espetáculo, como do não menos espetacular pôr-do-sol nas águas do oceano que se impõe como cenário de fundo.
Porém, antes de entrar no templo, temos de entregar sacos e mochilas à guarda do templo, recebendo uma pequena moedinha de plástico com o número do cacifo onde ficam guardados e também uma peça de pano lilás que vira sarong de visitante. Nada de calções…
A dança Kecak é realizada por perto de uma centena de participantes em tronco nu e com o típico sarong balinês, em padrão de xadrez preto e branco e sem a ajuda de qualquer instrumentos além da voz dos participantes que, em coro, repetem incessantemente o que os macacos da épica sagrada gritavam: “Cak! Cak! Cak!” ou “Keh-Chak”, liderados por um solista que faz variar o tom e o ritmo.
Só visto. De certeza que devem existir imensas filmagens no Youtube para os mais curiosos. Não percam.
Outra das visitas irrecusáveis é um concerto de gamelão, ou gamelan, na língua local. Nenhum esforço deve ser poupado para assistir a uma destas pérolas. E, mais uma vez, no Youtube podem apreciar um qualquer evento.
Tivemos a sorte de assistir a um concerto a alguns parcos minutos de Dempasar. É impossível descrever a música (lá está, Youtube…) mas, sobretudo, o ambiente. Uma orquestra de gamelão é principalmente de percussão em incríveis instrumentos das mais variadas tonalidades.
É preciso aqui elucidar que este tipo de música teve um impacto profundo no ocidente. Em finais do século XIX, nomeadamente em compositores como Claude Debussy e Erik Satie, que puderam presenciar a apresentação de um gamelão javanês na Exposição de Paris de 1889. Escalas, melodias, ritmos e texturas de gamelão continuam a inspirar compositores de todo o mundo.
Entretanto, uma vez que o nosso próximo destino era a ilha de Lembongan, ou Nusa (ilha) Lembongan, tornava-se necessário entrar na grande aventura de cambiar alguns dos meus dólares por rupias indonésias.
Cambiar dinheiro é pedir problemas e há vários esquemas para os “cambistas” nos enganarem. O primeiro que tentei optou por fazer o truque mais velho: tem um maço de notas na mão, e conta-as à nossa frente sem as largar. Porém, conforme as conta, várias delas vão ficando dobradas na sua mão e quando nos passa o maço de notas, imaginando que a contagem está feita, apenas nos dá as notas que não ficaram dobradas e ocultas na sua mão fechada.
Para nos proteger é muito fácil. Contamos SEMPRE as notas que nos são entregues. É preciso combater o nervosismo, mesmo quando o “cambista” nos tenta apressar. Calmamente, uma a uma, contamos as notas, e só depois passamos o nosso dinheiro para a mão do cambista.
Após a primeira tentativa frustrada, outra proposta e desta vez num pequeno escritório. As notas foram sendo contadas e depositadas em cima do balcão e, mesmo assim, recolhi-as e contei-as de novo. Tudo certo, podíamos seguir viagem.
Nusa Lembongam
A primeira parte da viagem a partir de Dempasar foi feita de autocarro e foi cómoda e rápida: cerca de uma hora pendurado à janela, curiosidade à solta, tateando paisagens, gestos e búfalos remoendo pacificamente o verde luxuriante de infinitos tons.
Saindo do autocarro fica claramente visível, no fim da avenida, o porto, a praia com mar de milhentos reflexos e vários “agentes” procurando clientes, no meio de lojas tentando atrair turistas.
A escolha para esta viagem foi feita pelo tipo de barco o qual implicava também o valor do bilhete. As oferta era principalmente feita pelo poder dos motores. Escolhemos o tradicional jukung, indiferentes que éramos à motorização. Tive de pedir para repetir algumas vezes o nome da embarcação, parecia estarem a gozar com o termo junco, mas não, afinal era mesmo jukung.
Em Timor, o mesmo tipo de barco mas muito mais pequeno, usado principalmente para a pesca e não para o transporte de passageiros, chama-se “beiro”.
Andei diversas vezes de junco, o elegante barco chinês, com velas em leque e também andei de lorcha, filha de junco e caravela.
A viagem, interessantemente próxima das águas, muito calma, graças aos estabilizadores, com um grosso bambu de cada lado da embarcação a ajudar o corpo esguio da embarcação a lutar contra as ondas de um ou outro lado.
A viagem durou mais do que pensava – cerca de duas horas – mas nem se dá por isso, entretidos a ver peixes, golfinhos e, com sorte, até peixes voadores.
E finalmente… praia!
Não era grande o areal, de largo, uma pequena faixa de uns 10 metros se tanto, que se estendia por uma baía curvada entre duas elevações rochosas em cada ponta.
Na areia encavalitavam-se as espreguiçadeiras, cada grupo pertencendo a ao respetivo aglomerado de cabanas para alugar.
Como sempre acontece nestes sítios, paga.se a proximidade ao mar. Basta atravessar mais 20 metros e na segunda fila de cabanas o preço é substancialmente inferior.
Ficámos no primeiro andar de uma cabana forrada a folhas entrançadas. Nem desfizemos as malas e ala para a praia! Mergulhos bem merecidos, descanso ao sol, como manda a lei do bom banhista…
Pouco almoçámos, que em viagem o jantar é rei e fomos desfazer malas e preparar a estadia. Ainda bem que o fizemos pois pouco tempo decorrido caiu uma daquelas chuvadas torrenciais com gotas de litro e meio.
Nada de grave, pois 10 minutos depois tudo estava seco e nem sequer se podia imaginar que apenas uns minutos antes tudo estava, mais do que encharcado, em que dificilmente se podia transitar entre as poças.
Os búfalos, esses, com a bossa característica no cimo do pescoço, continuavam calmamente a pastar ou simplesmente olhando com curiosidade as árvores, os pássaros, ou fosse o que fosse.
A chuvada que se repetiu todos os dias depois de almoço, batia forte mas durava pouco. Pouco depois, já o sol brilhava, começaram as passeatas.
Um pouco mais atrás das filas de cabanas estava a estrada polvilhada de quiosques que vendiam as coisas de maior necessidade: detergentes em embalagens individuais que pareciam preservativos, refrigerantes e a imprescindível banana frita.
Curiosamente, em locais estratégicos, havia uma espécie de quiosques quadrados, compostos por um estrado de cerca de 5 metros de lado, com um longo telhado protetor do sol e da chuva. Os materiais de construção variavam, desde o bambu à madeira ou até mesmo em betão.
O seu propósito? Simplesmente estar por ali, à sombra e protegidos da chuva, a descansar e confraternizar. E lá estavam, meio deitados, meio sentados, palrando ou saboreando o silêncio, que era nenhum. Pássaros, chuva, galinhas, búfalos, todos diziam – com força – de sua justiça.
Em Bali há templos por todo o lado, sempre com portais tipo colunas elevadas aos céus, sem lintel, como que para facilitar e balizar aos deuses a sua entrada.
Um pouco mais à frente pudemos lobrigar uma calma procissão de homens e mulheres que se dirigiam ao templo. Todos respeitosos, todos sorridentes e convidativos à participação. E lá fomos.
Na direção oposta, no fim da mesma estrada, uma pobre aldeola à beira de um enorme mangal, dedicava-se às suas tarefas diárias e, naquele momento a curiosidade servia-nos a todos. Uns metros depois, um outro templo que parecia abandonado. Mas não era. O seu culto era anual e os cuidados ainda não tinham chegado.
Novo dia, nova praia.
Barquinhos transportavam os surfistas para a rebentação, lá longe, passado o recife que protegia a baía e suas quintas.
Acontece que as quintas não eram em terra, mas sim no mar. Eram “plantações”, divididas em retângulos, cuidados por laboriosos “lavradores” flutuando em embarcações redondas de vime, que garantiam não só a flutuação do cuidador, mas também a recolha da colheita.
Vista de cima – melhor ainda da esplanada de um restaurante – podia ver-se a diferença de cores de cada retângulo, que animava o pano de fundo azul da baía. Quanto mais grada, mais escuro o seu verde.
Mais tarde, durante um pequeno almoço, assistimos à chegada dos jukungs que recolhiam as colheitas da aldeia, vendidas para as grandes farmacêuticas.
Essas algas (hydrocoloides) afinal, eram um elemento indispensável como espessantes e, provavelmente, estão presentes, não só em tudo quanto é gel, como em cada gelado que gostosamente consumimos.
E lá iam elas, em sacas carregadas aos ombros dos aldeões, que corriam lestos pelas estreitas vielas entre os grupos de cabanas e, depois, por estreitas tábuas que subiam do areal ao convés do junkung. Chegara, enfim, o momento da retribuição pelo labor diário.
Ubud
A partida tinha um toque de melancolia pelo apartar daquela baía, rapidamente transformada em memória. Mas o próximo destino, Ubud, era promissor. Trata-se da capital cultural de Bali.
Sempre na proteção do vulcão do monte Agung, sagrado para os balineses, provavelmente na esperança da próxima erupção ser mais benigna.
Ubud apresentava-se como uma cidade movimentada, repleta de lojas e até amplos mercados orientados para os turistas, vendendo de tudo: estatuetas de madeira, roupas, quadros, joalharia feita de coco ou pedras preciosas…
Numa das lojas, uma bela camisa atraiu a nossa atenção, era daqueles tecidos diáfanos que só naquelas temperaturas se podem encontrar. Por curiosidade conferi a etiqueta: Made in Algarve.
Numa outra loja, especializada em madeira, vi os tradicionais espanta-espíritos balineses, feitos de cilindros de bambú encimados por meio coco e que, com o vento, produziam o seu característico e amigável som. O comerciante estava em pleno labor no fundo escuro da loja. Havia de tudo, de cadeirões a caixões. Perguntei-lhe pelo nome do espanta-espíritos.”O quê?” Respondeu. Explicitei, com gestos e indaguei: “como se chama aquilo que com o vento faz glong-glong?”
– Glong-Glong, respondeu.
Como não podia deixar de ser, impunha-se uma visita ao templo mais famoso de Ubud: o Templo da Floresta do Macaco Sagrado.
Lembram-se da dança Kecak? Pois, Hanuman, o deus rei dos macacos, é peça central do romance hindu Ramayana, mas não é menos central para o budismo chinês, o macaco é uma das personagens principais na “Viagem para o Ocidente”, o romance publicado no século XVI, em plena dinastia Ming, que descreve a viagem que trouxe o budismo da Índia para a China.
Ora em Ubud, no tal Templo da Floresta do Macaco Sagrado, não faltam macacos. Na verdade, há muito mais macacos do que árvores, mas mesmo muitos mais. E eles sabem que são sagrados.
Num instante destroçaram os sacos de plástico que tínhamos nas mãos. Não era agressividade, mas sim curiosidade. E gula.
Infelizmente para eles, os sacos não continham nada comestível ou sequer interessante. E lá ficámos nós, na sombra frondosa da floresta – sagrada – a apanhar as bugigangas com que iríamos fomentar a alegria de amigos e parentes após o nosso regresso.
Além do templo, dos mercadores e das coloridas ruas de Ubud, uma das atividades imprescindíveis é uma passeata pelos seus abundantes arrozais.
Os arrozais são, como se sabe, um cultivo imerso, realizado em cantões contíguos bordeados por linhas de montículos de terra que contêm as águas e, quando necessário, abertos de uns para outros, numa ciência imemorial.
Alguns destes montículos constituíam a estreita passagem de peões, bicicletas e até de moto-enxadas que negociavam a passagem de forma a atravessar a paisagem, ampla, aqui e ali acentuados por uma qualquer árvore.
Aconteceu que, devido à extraordinária robustez das sandálias da Isabel, adquiridas em Dempasar e que deviam ser feitas de papelão prensado, eis se não quando se rasgou uma das suas tiras. Como ali perto podia ver um estabelecimento de comida, mercearias e o mais que fosse, lá fomos na esperança de terem supercola. E tinham.
Sentámo-nos numa das várias mesas onde alguns camponeses sorviam a sua sopa de massa, e dediquei-me com completa e profunda concentração ao ofício de sapateiro de forma a ressuscitar as feridas sandálias.
Juntando com força a tira cortada, já sob o efeito da cola, fazendo tempo para o seu efeito miraculoso, os meus olhos vaguearam pelo estabelecimento básico e, ao mesmo tempo, acolhedor. Um detalhe me chamou a atenção.
Em cima do balcão, uma grade de isqueiros pareciam estranhamente familiares, ao mesmo tempo que destoavam do local.
Parecia impossível, mas, depois de verificar que as sandálias estavam prontas para o uso, aproximei-me do balcão e confirmei. Eram isqueiros que ostentavam com orgulho o emblema do Sport Lisboa e Benfica. Azar o meu que sou do Sporting.
Há coisas assim. Os isqueiros deviam ser feitos aos milhões na China e distribuídos não só em Portugal como por todo o planeta, onde melhor calhasse. E calhou ali, no meio dos arrozais em Ubud, Bali.
Estávamos no calmo entardecer, à luz da vela, no alpendre, ouvindo música e a desfrutar da brisa fresca e com o som dos milhares de bicharocos acalentados pela promessa da noite. O regresso estava já na alvorada, mas a curiosidade não abrandava.
Um de entre os inúmeros sons sobressaía. Começava por uma espécie de pigarrear, depois um sonoro bissílabo: To…Kê. Não resisti. Contra nuvens de mosquitos sedentos do meu sangue (ah canalhas!) fui buscar a lanterna. Que raio de animal podia pigarrear e soletrar?
Tratava-se de um grande lagarto – uma osga anafada – que não se incomodava com a luz, antes pelo contrário, ela aumentava o seu repasto, e lá continuava: hum, hum… Tó…Kê..
Era um… Tokê.
E pronto.