Caballitos de Totora

Há muito tempo que o Hawai é tido como o local de nascimento do surf. Porém, a verdade é que começou – milhares de anos antes – no Perú, em que as pranchas eram construídas com junco: os caballitos de totora…

Encontrámos estes caballitos de totora, assim dispostos ao longo do paredão de Huanchaco, tão apelativos para as câmaras de turistas, numa excursão que fizemos partindo de Trujillo, a terceira cidade mais populosa do Perú.

É raro, raríssimo, embarcar em excursões. Lembro-me de três ou quatro em toda a minha vida, mas aqui, neste caso, era mais barato e mais simples do que tentar lá chegar por várias conexões de autocarros de carreira. E ofereciam almoço.

Nesta excursão, ainda por cima, incluíam uma visita aos mais famosos templos da região: Huaca del Sol e Huaca de la Luna, precisamente do outro lado de Trujillo, ou seja, Huanchaco a norte e as Huacas a sul. As excursões têm destas coisas.

Para além do caballitos, não se pode dizer que Huanchaco tenha muito para oferecer. Além do almoço, claro.

No entanto, além dos caballitos têm ainda um outro bem patrimonial, o ceviche, o famoso prato peruano, normalmente de peixe e marisco, cozinhado apenas pela acidez do limão, que conquistou o mundo e é realmente divinal.

Consagrado como Património Imaterial da Humanidade, este feito da culinária peruana é um tratado de sabores marinos pristinos e essenciais somados às propriedades do limão, a maior parte das vezes da lima, encontrando-se por todo o litoral peruano e nas suas grandes cidades, a começar pela capital, Lima.

Arregimentados pelos guias da excursão para um restaurante de enormes dimensões mesmo à beira da praia, autocarro estacionado mais à frente, onde não constituísse barreira às vistas para o oceano, lá nos fomos sentando, com menu fechado e sem grandes expetativas quanto ao que nos iriam servir.

Ao contrário do que pensava, e do que um dirigente político afirmava, raramente não me engano e tenho sempre imensas dúvidas. Logo a abrir veio um magnífico ceviche.

Mentira. O repasto abriu com uns pratinhos de milho frito.

Aqui é preciso esclarecer. O milho – tal como a batata – é um dos orgulhos nacionais do Perú. Existem muitas variedades de milho, mas aquele que é frequentemente oferecido frito é gigante. Ou melhor GIGANTE.

Uma visita a qualquer mercado no Perú, de imediato, nos faz lembrar que é daqui que vem o milho e a batata. Na Europa, antes de Colombo e Caminha, só milho miúdo e batata nenhuma.

Ora, nos tais mercados, as várias bancadas de batata, divididas por níveis e espécies diferentes deste tubérculo, faz-nos parar e olhar mais demoradamente. A cor, o feitio, a espessura da casca e o seu propósito culinário produz admiração e surpresa. Quando perguntamos porquê tanta variedade, olham-nos como tolinhos recentemente libertados de um qualquer hospício. Então não se estava mesmo a ver?

Depois, nas cercanias de Qosco ou Cuzco, pudemos conferir os imensos socalcos esculpidos nas mon

Ruínas de Caral, uma das primeiras cidades do mundo.

tanhas. O jogo entre altitude e terreno implicavam que certos tipos de batata se davam aqui, mas não ali, até que, alto demais, já não dava nenhuma.

Estamos perante um labor e um saber desenvolvido ao longo de séculos, afinado por um conhecimento de experiência feito, com suor e sangue, decerto.

E para nós… era batata. Pronto ponto. Dá que pensar, não dá?

Enfim, repasto tomado, passeata ao sol, verificar o junco dos caballitos, percebemos, junto dos simpáticos pescadores sentados no muro que retém a areia escura e cascalhosa da praia, que este artefacto milenar se destinava à pesca, não era bem um desporto, nem exibição de torsos musculados, era um desígnio existencial e da sobrevivência.

Sei bem que ser pescador é coisa identitária e bem diferente de uma profissão.

Neste caso, além da difícil e penosa tarefa de obtenção do peixe, drama de todos os pescadores, acresce o problema específico dos caballitos de totora: a secagem.

À medida que são utilizados o junco vai absorvendo agua e, consequentemente, ficando mais pesado até perder a sua utilidade. É preciso deixar secá-lo muito bem e após alguma repetição do ciclo de uso e secagem, o tempo de repouso ao sol já não é suficiente, é preciso substituir o junco.

Como se pode ver, a proa dos caballitos é levantada, tal como a dos barcos e sobretudo como a do nosso meia-lua. É uma exigência das ondas do mar, interpretadas pelos construtores, tanto cá como lá.

Depois disso, lá fomos em visita às pirâmides Huaca del Sol e Huaca de la Luna. Desde logo, são locais que estão em pleno labor arqueológico e todos os dias se descobrem indícios sobre os seus construtores, a cultura Moche.

Ao contrário do que nós desprevenidamente pensamos do Perú, atribuindo uma genealogia direta e unívoca com os Incas, a realidade é que o império Inca, com início no século XIII e derrocada às mãos dos nossos vizinhos ibéricos por volta do século XVI, o Perú é um retalho de etnias que estabeleceram civilizações desde a origem dos tempos, como na cidade sagrada de Caral, com mais de 5000 anos, talvez a mais antiga das américas e disputando um lugar entre as mais antigas cidades de todo o mundo.

Huaca de la Luna, vista a partir da Huaca del Sol

Os construtores destas Huacas foram um povo diferente: os Moche, posteriormente controlada pelos Chimu criando uma certa continuidade. Trata-se de uma civilização que teve origem no primeiro século da nossa presente era e que, já como Chimu, acaba dominada pelos Incas pouco antes da chegada dos espanhóis.

Além das Huacas, os Moche construíram um complexo sistema de irrigação que conduzia a preciosa água obtida nas elevações andinas para as suas férteis planícies na zona de Trujillo, Huanchaco, etc.

Curiosamente, foi por aqui que os Incas os dominaram, aliás numa estratégia que frequentemente utilizavam: dominavam os pontos altos, onde a água era captada e faziam os povos renderem-se pela sede.

Huaca é um termo que significa quer a divindade, quer o local onde é adorada. Neste caso, o sol e a lua. A Huaca de la Luna estava ainda fechada aos visitantes e a del Sol era a grande atração turística de Trujillo.

Construída em tijolos de adobe ao longo dos séculos, calcula-se que em oito diferentes reinados, presentemente apresenta quatro níveis acessíveis por íngremes escadas ou rampas.

Os conquistadores nuestros hermanos, tiveram a desfaçatez de desviar o curso do rio Moche, de forma a ladear a Huaca del Sol banhando a sua base, de forma a ter melhor acesso ao ouro, o que existia e aquele que sonhavam existir. O ouro tem esse condão misterioso de acordar o que não dorme.

Calcula-se que esta operação hidráulica danificou tão gravemente a construção que, conjuntamente com o saque fez perder-se dois terços da construção que hoje se eleva a cerca de 41 metros.

Presentemente, no sítio monumental, há um percurso aberto especialmente para os visitantes com diversas áreas de trabalho arqueológico bem visíveis, mas de acesso vedado. Muitos dos achados são apresentados numa sala na base da pirâmide e, na verdade, um pouco por todos os incontáveis museus do Perú.

No nível mais alto, com boa vista para a Huaca de la Luna e uma panorâmica da região, repentinamente, comecei a sentir-me febril e extenuado. Tinha sido picado por algum mosquito que não vi, nem sequer consegui lobrigar marca da picada.

Lá tive de acorrer a uma farmácia, já em Trujillo para comprar a “bomba” Atarax, remédio para todas as alergias, ou insónias. Na verdade estava até inchado e o medicamento, ao longo de dois dias ajudou-me a regressar ao normal.

Trujillo, a cidade propriamente dita, está marcada pela sua Praça de Armas, encimada pela sua Catedral Basílica de Santa Maria. Na verdade, a terceira construção deste templo, uma vez que as duas primeiras foram destruídas por terramotos no século XVII, o último dos quais, a 29 de fevereiro de 1635, vitimou também o responsável da reconstrução, Bartolomé de las Cuevas.

O interior da Catedral é relativamente sóbrio, contrastando com o seu altar rococó. A nave principal, decorada com telas do que ficou conhecido como a Escola de Pintura de Cuzco, ostenta ainda detalhes em gesso em ultra barroco. É a sua dimensão, sobretudo a amplitude da nave principal que lhe dá a sensação de sobriedade.

Esta zona é apelidada de “cidade da primavera eterna” o que ajuda aos passeios pelas suas artérias de vários edifícios coloniais com varandas de ferro forjado com a sua famosa arte e complexidade.

Ainda na Praça de Armas, podemos ver “La Casa de la Emancipación” onde foi declarada a sua independência. A primeira do Perú. Podemos ver, mas de fora, porque frequentemente se encontra encerrada. Coisas da Fundação BBVA, que é como quem diz, coisas dos banqueiros…

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