A “minha” Arrentela – Altos e Baixos

A “minha” Arrentela – Altos e Baixos

Parte 1/4

 

A Arrentela está situada na margem sul do estuário do Tejo, em local alto e debruçado sobre o esteiro do Rio Judeu, derradeiro afluente do Tejo.

O seu nome provirá eventualmente de “Aventella”, por ser terra varrida por muitos ventos, ou de “Arreentella”, por causa de estar implantada em areais ou ainda, segundo a tradição popular, de “além terra”, desde que foi avistada do rio por pescadores.

No primeiro registo de que há memória a “Arramtella” era referida por Fernão Lopes, na Cronica de D. João I, datada de 1384.

Para mim a Arrentela onde vivi até à ida para a tropa, era um belo triângulo para quem a observava do lado da Amora, com uma base junto à maré que ia desde a Quinta do Cabral até à Casa da Palha do Augusto Cabrita e depois no seu vértice o Adro da Igreja com o Depósito da Água.

Dentro deste triângulo viviam as suas gentes que são o motivo destes pedaços onde relato, supostamente por ordem cronológica, o que a minha memória guardou desses tempos, desde o meu nascimento até 1966.

Como ainda não havia Centros de Dia, as tabernas eram o local de convívio dos homens depois do trabalho nas fábricas vizinhas, deixando para as mulheres as tarefas caseiras e a educação dos filhos, porém muitas mulheres também trabalhavam, pois, os salários eram escassos.

Nasci ainda antes do final da II Grande Guerra e, portanto, num período de grandes privações para a esmagadora maioria dos Arrentelenses.

Apesar de nascido e ter vivido durante 9 dias no rés-do-chão de um prédio, onde no 1º andar funcionava a Sociedade, dado que a seguir aquele período o meu Avô foi viver para os prédios da Fábrica da Lã, numa zona onde se iniciava o lugar da Torre da Marinha, sempre me senti um Arrentelense de gema.

Sigam as histórias, em memória de todos os que lá viveram e deram identidade a uma Arrentela já desaparecida.

 

 

1 – Como o ti Porfírio ensinou a Arlindo da Estância a comer

 

O ti Porfírio era um velho carpinteiro de imensas manhas, que “carpintava” pouco e que em tempos, fora empregado no meu Avô José Pedro, fazendo depois ganchos na sua profissão ali para o Seixal, portanto sem ordenado certo, ocupando os seus tempos para sobreviver.

Tinha uma bicicleta muito velha com volante à corredor e com a particularidade de não ter luzes nem campainha. Assim, quando vinha pela estrada o seu estridente assobio era logo ouvido para o pessoal se afastar.

Passava muitas vezes frente à Estância de Madeiras e Drogaria que eram do meu Avô, para ir almoçar a casa ou outras tarefas, que para aqui não contam.

A minha Avó da Estância tinha na época o seu filho mais novo, o Arlindo em idade de criança e que, como quase todos os miúdos nestas idades, não comia bem.

Pacientemente a minha Avó vinha de prato de sopa na mão para a rua, sentavam-se em cima do muro, que fazia a separação entre a estrada e a maré e lá ia convencendo o Arlindo, de fraco apetite.

Entretanto terá chegado um cliente para atender e a minha Avó disse ao Arlindo para não sair dali que ela voltava logo a seguir.

Nisto passa o ti Porfírio que perguntou ao Arlindo o que fazia ele ali. Que estava para comer, mas não tinha fome, ao que o velho sabido, perguntou se ele queria aprender a comer, que o ti Porfírio o ensinava.

Consentida a situação o ti Porfírio comeu a sopa toda ao miúdo e pirou-se.

Veio a minha Avó e ficou surpresa quando o Arlindo lhe disse que já sabia como se comia, pois, o ti Porfírio o ensinara, comendo a sopa toda.

Escusado será dizer que o ti Porfírio evitava a Maria da Estância e sempre que podia, ia por outros caminhos, apesar das esperas que ela lhe fez.

 

 

2 – Composição da Banda da Arrentela

 

Falar da Sociedade será citar a sua Banda de Música como elemento mais valioso e razão primeira da sua existência. O período áureo da banda da Arrentela terá sido nas regências dos maestros Carlos Soares de Oliveira e António Gonçalves, pessoas assíduas nos almoços em casa do meu Avô em dias de festa.

Seguramente que irei cometer alguma injustiça no esquecimento dos elementos que, de forma continuada, tocaram na Banda.

Assim e por naipes tínhamos:

Clarinetes: Henrique Almeida, Vítor Carvalho, Manuel Lopes, Joaquim Miranda, Sérgio Miranda e Zé da Mariana

Saxofones: António Fuinha, Alexandre Campos, João Chucha, Galaor e João da Amália.

Trompetes: António Diabo, Paulo David, José Afonso, António Milheiro, Joaquim Crispim e Joaquim de Sesimbra.

Trombones: José António Aleixo, João Bandeira e Tomás da Mata.

Trompas: Manuel da Aurora, Manecas Milheiro, José Matias, Crispim Xavier e Firmino Bandeira.

Tubas: Porfírio da Maria Rosa e Caetano da Adélia.

Percussão: Crispim Bombeiro, Antero Aleixo, Eugénio Caixa e Germano Gil.

Por trás de todos estes músicos, havia a figura tutelar do João da Vitória, velhinho muito bem-parecido, que a todos ensinara o solfejo até obterem permissão para tocar um instrumento.

Completava o fabuloso elenco o Zezinho, um autêntico pau para todo a obra, dentro e fora de sua Sociedade, desde assar e vender castanhas até engraxar sapatos, pois lá em casa haviam cinco bocas para alimentar. Era incansável este homem de uma entrega total a quaisquer missões que lhe atribuíssem. Simbolicamente, na banda “tocava“ estandarte.

Diria que muitos daqueles homens foram ótimos músicos, mas sou tentado a destacar dois deles, pois os conheci de perto e escutei os comentários que terceiros faziam das suas aptidões natas para a música, cada um pelas suas razões. Ambos eram meus tios.

O Henrique Almeida era um exímio clarinetista tendo sido tentado a tocar com a banda do Montijo em festivais na Holanda, mas a sua simplicidade e algum receio de se sobressair o levaram a rejeitar aquela oferta. Estamos a falar de uma época em que ir à Holanda seria o mesmo que ir agora ao fim do mundo. A sua qualidade de intérprete valeu-lhe na Banda a tarefa de contramestre, lugar habitualmente reservado ao melhor.

O outro era o Antero Aleixo, tocava caixa e tinha a particularidade de não saber uma nota de música. Com uma memória fantástica e um ouvido atento, ele ensaiava cada nova peça do reportório de modo peculiar. Primeiro, quem tocava caixa no inicial ensaio era o Crispim Bombeiro e o Antero estava atento só a ver, depois cada qual desempenhava o seu instrumento, tendo só o Crispim que lhe dar o momento de entrada e o resto era com ele.

Achei sempre fantástico este modelo de aprendizagem. Foi de resto um dos escolhidos para tocar na Banda do Montijo na deslocação à Holanda.

Curiosamente o Antero foi posteriormente músico em conjuntos ligeiros, primeiro o Beira-Mar e depois o Ribalta tocando bandola e viola elétrica como solista, sem nunca dominar a pauta. Fantástico.

 

 

3 – Atlético Clube Arrentela

 

Como é notório no desenrolar destas memórias da Arrentela sempre fui, muito mais chegado à Sociedade do que ao Clube, mas por via das muitas idas ao Futebol com o meu Pai e noutras ocasiões com o meu tio Antero, sempre fui registando as várias vivências do Clube.

O Arrentela era dominado então pela família dos Figueiredos, gente empreendedora e dos quais destaco o Amorim (meu primo por afinidade) que foi durante muito tempo, igualmente, Presidente da Junta de Freguesia.

Ontem, como hoje, as esferas de atuação dos mais “altos”, eram a referência.

O ACA – Atlético Clube da Arrentela foi fundado em 1925 por um grupo de amigos, dos quais só conheci o Francisco Neves, meu vizinho nos prédios da Fábrica da Lã.

Na sua primeira equipa jogava o meu tio Leonardo Ramalhete, em casa de quem, muitos anos mais tarde passei as primeiras férias, fora da Arrentela, imagine-se em Cacilhas.

É filial número 1, do Atlético Clube de Portugal, clube com várias passagens pela divisão maior do Futebol Português, com a curiosidade do ACA ser mais velho que o clube mãe, dado o clube de Alcântara ter sido resultante da fusão entre o Carcavelinhos e o União de Lisboa (este o verdadeiro clube mãe), com a data da fusão em 1942, portanto depois do Arrentela.

Em tempos e por via das relações mais estreitas entre os dois clubes, vários jogadores do clube de Alcântara vinham rodar pelo Arrentela sendo que o Arrentela também tinha nesse acordo a cedência de algum jogador que se destacasse ao clube mãe, como foi o caso do Florestino, mas o facto é que o jogador mais destacado do seu tempo, o Carnot Pereira, acabou por ir para o Vitoria de Setúbal.

Havia ainda a permissão para os sócios do Arrentela, com as quotas em dia, puderem ver jogos na Tapadinha de forma gratuita. Ainda lá fui com o meu Pai no tempo em que o Ernesto era guarda-redes do Atlético e eu fiquei por trás da baliza a ver o jogo, não me recordo contra quem.

A minha especial predileção de memória, vai para a equipa principal que disputava o distrital da 2ª divisão de Setúbal, onde pontificavam o Alberto Nogueira (um jogador de elevados recursos, mas que intercalava o muito bom a defender as balizas, com atitudes impensadas como despir a camisola e não querer jogar mais, quando sentia injustiças de arbitragem), o meu primo Aureolino e o João Bezerro que eram defesas de antes quebrar que torcer, o António e o irmão Joaquim de S. João dois estilistas, o meu tio Antero muito rápido e que deixou de jogar por pressão da família e o Rebola que era o pensador do jogo.

Ainda no Futebol, há um nome que não posso deixar de mencionar o do João do Padre, um caso sério de longevidade, como ponta direita, eternamente ao serviço do seu clube de sempre, como era apanágio desses tempos.

Fora do campo, mas de alma e coração onde fosse preciso, estava a ajudar o seu ACA o Albino Marques, homem notável de dedicação e que recordo por causa de ter indicado ao árbitro como a bola tinha entrado na baliza adversária, exemplificando com o chapéu-de-chuva a empurrar a bola, até esta transpor a linha de golo. E o árbitro validou o golo.

Bastante mais tarde, toda a Arrentela sofreu com a perna partida do José Afonso. Recordo bem o som que se ouviu em todo o campo. Sem seguro, nem sei se o ACA foi capaz de alguma forma de cobrir a incapacidade do moço, que durou bastante tempo.

Além do futebol, o Clube praticava outras modalidades. Por inesquecível para mim, cito só o Pingue-pongue, dados os duelos entre o Arrentela e a Mundet e sobretudo o frente a frente entre o Jaime Lourenço pelo ACA e o Álvaro Fava, um canhoto que era igualmente jogador de Hóquei em Patins.

Fantásticos: estavam um tempo imenso a jogar sem que nenhum perdesse o ponto.

 

 

4 – A gestão do cemitério

 

O meu Avô António era o Administrador do Cemitério da Arrentela, cargo que, entretanto, passou para a esfera da Junta de Freguesia. Sabia ele pelos registos, que eu próprio manuseava, quais as campas que estavam compradas e as que eram do próprio cemitério para uso comum, normalmente para os mais pobres, controlando o tempo que cada corpo estava enterrado para completar o ciclo de 5 anos, que se julga suficiente para que os ossos pudessem ser levantados e usado o lugar para o funeral seguinte.

Os coveiros foram vários ao longo do tempo: o Júlio da vinha da Ribeira, o Carlos Pepino e, no meu tempo, o Inácio Fachu, sobrinho direito da minha avó Etelvina, que auferiam um tanto por cada funeral. Esse trabalho passava por abrir uma cova levantar os ossos como referi, ajudar no enterro e voltar a tapar com terra o caixão do novo residente.

Ora o Inácio era à época uma das minhas referências como primo, porque também trabalhava na mesma secção da Fábrica da Lã onde o meu Avô era encarregado e finalmente pelo seu potencial para o futebol onde jogava no Arrentela.

Teria sido um bom jogador se a vida lhe tivesse proporcionado condições melhores.

Mas levou sempre uma vida de grandes dificuldades. Muita fome aquela gente passou, ele e todos os seus irmãos.

Sempre que o Inácio levantava um corpo para um funeral seguinte, havia a hipótese do mesmo ser solicitado pelos descendentes e passar as ossadas para uma pequena urna, onde eram guardados os ossos para a posteridade, quer num jazigo, quer por vezes aguardando a morte de um familiar seguinte, onde eram depositados dentro do caixão, junto aos pés.

Caso contrário os ossos eram arrumados por tamanhos em grandes caixotes que existiam numa casa de guarda de equipamentos no cimo de cemitério e ali ficavam a monte sabe-se lá até quando.

Quando ao Inácio apanhava o meu Avô pelas costas ele ia buscar uma das caveiras depositadas naqueles caixotões enormes e ficava tempos infinitos e dar os chamados ”chutinhos”, sendo capaz de atingir dezenas e dezenas de toques sem deixar cair o osso no chão.

Tínhamos um pacto: ele deixava-me brincar noutros locais do cemitério e eu em troca nada dizia ao meu Avô. Negócio fechado.

Daqui que eu tenha uma relação fácil com os cemitérios o que surpreende os meus amigos. Aliás sempre que visito uma terra pela primeira vez, sou tentado a ir ver como está o cemitério desse sítio.

Tenho uma foto tirada em Boston, junto de uma campa que refere o ano de 1694 como o nascimento de uma pessoa ali enterrada. Acho fantástica esta perduração.

Só uma curiosidade no decorrer desta descrição um pouco mórbida.

Os familiares do Inácio nomeadamente os seus vários irmãos tiveram sempre muitas privações como já referi, aquela gente quando jovens, passaram por muitas refeições sem as ver, só depois quando alguns casaram, as suas vidas lá se foram ajustando.

O Inácio e mais os seus 6 irmãos eram da mesma geração do meu Pai e dos filhos dos outros Irmãos da minha Avó.

Seriam ao todo 12 primos direitos entre si.

Tirando o próprio Inácio que faleceu num acidente de viação todos os primos faleceram antes dos irmãos do Inácio.

A habituação às privações a fortalecer o corpo? Livra.

 

 

5 – Funeral do Adelino Diabo

 

É um dos momentos mais marcantes da minha infância ter assistido ao funeral do filho do António Diabo. O Adelino era muito querido dos jovens que com ele tocavam música e havia falecido muito novo.

Era hábito naquela época, a Banda da Sociedade acompanhar os funerais dos sócios mais influentes e também dos seus músicos, como era o caso dele.

Creio que o reportório interpretado nestes casos, incluía sempre “A marcha fúnebre” de Chopin.

Para quem conhece a composição ela é pesadíssima. Agravava mais a situação o facto do Pai dele e os irmãos irem fardados e incorporados na Banda.

De resto havia mais músicos que com ele integravam a Banda e os conjuntos que abrilhantavam os bailes da época.

É muito difícil relatar de forma exata o ocorrido neste funeral, só perdura na minha memória o facto de ver toda a gente a chorar…

 

 

 

(CONTINUA)

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