A Rainha do Oriente
Fui a Xangai em 1987, na verdade, logo nas minhas primeiras férias de Macau e aproveitando o Natal, que ainda não era festejado na China, nem dava azo às viagens familiares, como no ocidente, mas que lá eram coisa do Ano Novo Chinês, em que milhões, muitos, atravessavam o seu país para festejar com a família.
Atravessei a fronteira de Macau a pé, para Gong Bei, em Zhuhai, na altura, pouco mais do que quintas, e aí apanhei um dos muitos autocarros para Cantão. Não havia Internet, pelo que tudo era feito à lei do mirone e à força de intenso parlapié – uma mistura de palavras, gestos e expressões, na discussão de preços.
A viagem para Cantão durava quase 3 horas. O estuário do Rio das Pérolas é um emaranhado de braços do Rio das Pérolas e as suas ilhas. Na altura ainda não estavam construídas as dezenas de pontes que transformaram este percurso num passeio. Eram voltas e mais voltas para passar de uma terra para a outra e, finalmente, o intenso trânsito para entrar na cidade, após intermináveis filas.
Mas não era o mais difícil. A estação de comboios de Cantão é gigantesca. Na praça que lhe beija os pés cabe um pequeno país. Uns anos depois, quando a Região Administrativa Especial de Zhuhai começou a atrair migrantes de toda a China, avaliou-se a população em cerca de um milhão que chegara de comboio e aguardava naquela praça por um visto de entrada em Zhuhai.
Comprar o bilhete para Xangai, ou fosse para onde fosse, também não era tarefa simples. Na China, ainda não havia sido instituído o conceito de fila e à frente de cada guichet formava-se um largo e volumoso magote, debatendo-se cada um pelo melhor lugar.
Havia um guichet para estrangeiros. À sua frente um magote tão numeroso como os outros, formado por uma multidão de chineses que não acreditavam nessas operações que distinguiam uns dos outros. Mao Zedong já morrera há cerca de 10 anos, mas não havia taxista que não tivesse o seu retrato colado no para-brisas para evitar acidentes, qual santinho de feira. O igualitarismo feroz também ainda imperava.
À força de muito empurrão, primeiro com subtileza e depois com base na força bruta, lá comprei o bilhete, de ida e volta, descansando depois.
Na altura, Cantão não era nada daquilo em que, muito poucos anos depois, se transformou. O trânsito era quase totalmente composto de bicicletas – milhões delas – camiões, uma ou outra limusine do partido e alguns táxis, que pertenciam aos hotéis, normalmente na ilha fluvial de Shamian.
Havia um som próprio do trânsito de Cantão daquele tempo, um chlim, chlim, próprio das bicicletas, como se mil fadas sininho sobrevoassem as ruas.
Já existiam restaurantes privados, dois ou três, mas a maioria eram estatais ou pertenciam também a hotéis. Existiam as lojas e cafés para turistas, tal como existiam duas moedas, uma para o povo: renminbi (dinheiro do povo, literalmente) e o FEC, Foreign Exchange Currency. Tudo em FEC era caro, tudo em Renminbi era baratíssimo.
Quando finalmente pude entrar no comboio, na minha cabine de 1ª classe, com sofá, duro para caroço, que se levantava e fazia uma cama… naturalmente, também dura como caroço, no entanto, uma coisa não deixou de me surpreender. Nada havia na cabine onde pudesse estar um naperon e que não o tivesse. Mesmo o assento-cama tinha um folho em crochet.
A janela parecia promissora e estava lavada, oferecendo uma vista límpida da gare, pejada de passageiros a chegar ou a partir.
Naquela altura os homens chineses dividiam-se em 3 classes: os que tinham um dólmen verde, como Mao, os que tinham um dólmen azul, como Mao e os que tinham um dólmen cinzento… adivinharam, como Mao.
Durante anos tentei criar uma qualquer lógica que distinguisse essa divisão e nunca consegui. Porém, conhecendo a China como conheci, não acreditei, nem acredito, que a cor do dólmen fosse uma janela para a liberdade individual de escolha. Ná, tem de haver uma lógica, uma razão, que explique tudo. Eu é que nunca lá cheguei.
Com os solavancos iniciais característicos de um comboio, a longa marcha teve início. Eram cerca de 1700 Km que me levariam quase dois dias a percorrer. Hoje, o TGV demora apenas algumas horas.
As viagens de comboio na China, estratificadas em 3 classes, representavam também as extrações sociais dos viajantes: na 1ª classe, comigo, os dirigentes, na segunda os quadros e na terceira, não era bem o povo, que esse ficava em casa, sossegadinho, às ordens dos dirigentes da comuna a que pertenciam. Os do comboio, eram aqueles que podiam viajar, ou que tinham de viajar por qualquer motivo. E o turismo não era coisa que se visse.
Que não haja confusões, havia turismo na China e muito, mas não era independente, nem usava o comboio. Autocarros, do partido ou sindicatos, viajavam para locais específicos, consagrados pela cultura ancestral – e permitida pelos cânones do Partido Comunista Chinês (PCC).
Algo que não faltava, nunca faltava, nem em hotéis, nem ali, era o grande termo de água a ferver, a caneca de cerâmica, com carimbos oficiais do hotel ou empresa, e os saquinhos de chá, distribuídos prodigamente e providenciais na viagem, permitindo bebericar à janela, a ver a paisagem a fugir para trás do comboio.
À minha frente no beliche, estava um casal, já para além da meia-idade, cheios de curiosidade sobre mim, como, de resto, todo o comboio.
A primeira questão que me colocaram: “quanto é que ganhas?”, logo a matar. Mas eu já estava preparado para isso. Já me tinham perguntado o mesmo numa paragem de autocarro em Macau e compreendi depois qual a resposta que salvava a situação: “ganho o suficiente”.
Era aquela medida de comunicação que sempre admirei nos chineses, e de certa forma por todo o oriente, especialmente no Japão. Uma espécie de jogo sobre o que se revela, de forma a respeitar o outro, e o que se subentende, de forma a respeitar a nossa privacidade.
As refeições eram servidas, invariavelmente, em tigelas generosas de esmalte, com uma flor estampada numa nuvem azul em fundo branco, com uma ligeira cor no rebordo, cheias de arroz e carne, peixe ou “dumplings”, que são uns bolinhos de massa de arroz. Em certas alturas, em vez do arroz, ofereciam um caldo com massa e aqueles bolinhos.
O ritmo embalador do comboio aconselhava dormitar aqui e ali. Um livro ajudava bastante, o Travel Survival Kit da Lonely Planet sobre a China e que era um enorme manancial de informações. A partir daí, nunca mais deixei de viajar com um desses guias, até muito recentemente, após a editora ter sido vendida sucessivamente, em cada uma das quais, subvertendo cada vez mais radicalmente a sua filosofia de guia para viajantes independentes.
Finalmente, Xangai!
A Paris do Oriente
Apesar de não haver ainda Internet e poder escolher entre centenas de alojamentos, na verdade, não era só a Internet que não existia, eram também as tais centenas de alojamentos… pelo que a escolha era evidente: o Hotel Jin Jiang, ou melhor, a Guest House Jin Jiang, um edifício com três andares nas traseiras do portentoso hotel de cerca de 10 andares, onde Nixon e Mao Zedong se encontraram.
Sempre que saía da tal Guest House, gerida pelo hotel do mesmo nome, mirava as janelas, todas iguaizinhas, da torre do hotel. Uma delas, que decerto tinha sido vítima de um lapso pelos empregados, estava escancarada, e sempre ficou escancarada enquanto lá estive, com as cortinas a drapejar para o exterior.
Na minha imaginação, aquela precisa janela era o sítio onde tinha ocorrido a histórica reunião, apesar de saber muito bem que não. Essa reunião implicou mais de uma centena de participantes, políticos e especialistas, de ambos os lados.
Seja como for, após depositar a mochila no quarto, a minha primeira preocupação foi a barriguinha, estava com fome!
Pelo mapa que dispunha, dirigi-me imediatamente ao célebre “Bund”, em chinês “Waitang”, uma zona de aterro, na margem ocidental do rio Huangpu. Esta zona era e é o ponto essencial de socialização da cidade através dos últimos dois séculos.
Sem esquecer o estômago, perguntei a um passeante por um restaurante. Olhou para mim com um ar vazio. Eu só falava algumas palavras em cantonês – que era… bem, pior que chinês, para ele … ainda por cima, quase de certeza, com os tons completamente avariados.
No entanto, com gestos não falhou. Indicou-me um pavilhão envidraçado, perto do gradeamento que separava o rio do passeio largo da avenida.
Quando entrei, a senhora com ar de chefe da coisa tentou dizer-me algo. Pelo ar da sala, completamente vazia, devia estar a dizer que já tinha fechado. Fiz sinal de comida, apontei para a boca, esfreguei a barriga e tentei o meu ar mais esfomeado. Cedeu. Apontou o balcão com recipientes já fechados.
Abri um deles e tinha uma coisa tipo costeletas. Tinham um ar meio ressequido, mas não era tempo para esquisitices. Fui ao pote de arroz – na China há sempre um pote de arroz branco – e servi-me.
A verdade é que me regalei, não sei se foi com a comida a entrar ou com a fome a sair, mas soube-me a… costeleta meio requentada com arroz branco. E pronto, aquele problema ficou ali resolvido.
No entanto, quando voltei a falar com a senhora perguntando quanto devia pagar, ela disse que não. Mostrei os Renminbi, mostrei os FEC … nada. Sorria muito e apontava a porta. Obedeci e saí à rua.
Nessa altura, nas cidades chinesas, era frequente os jovens alunos aprendentes de inglês, procurarem conversar com os turistas para praticar a língua que estavam a aprender. Por acaso, a um deles, mencionei o restaurante onde tinha almoçada quando cheguei. “Restaurante? Não é um restaurante. É a cantina da fábrica em frente”.
E foi assim.
Do mito à realidade, do passado ao futuro
Como foi dito, Xangai era considerada a Paris do Oriente antes da Grande Guerra. Na verdade, também era chamada “A Prostituta do Oriente”, pelas razões que se conhecem.
Curiosamente, foi precisamente esse epíteto que a imprensa oficial (não há outra na China Popular) atribuiu a Chris Patten, governador de Hong Kong, com quem negociava a transição de poderes da antiga colónia britânica. Patten, depois Lorde e depois comissário das relações externas da União Europeia, sempre no Partido Conservador, na altura em pleno consulado de Margaret Thatcher.
Naquela altura, depois do almoço, ao passear pelo “Bund”, ladeado pelos edifícios impressionantes do que fora o centro financeiro – e antes ainda de Patten ser governador de Hong Kong – não podia deixar de pensar no destino daquela impressionante cidade, agora que a China estava a consagrar um outro sistema económico a par do socialista.
O futuro veio esclarecer tudo, como normalmente faz. Porém, logo na altura, entre negociações para a passagem do poder, a parte britânica foi clara na sua posição sobre a necessidade de proteger o poderio financeiro de Hong Kong.
A verdadeira praça forte financeira da China foi e será Xangai, disseram os chineses. E assim foi. E assim é.
Percorrendo a Avenida Zhongshan, na margem com o rio Huangpu e, do outro lado os edifícios cinzentos que podiam ser americanos, com traça ainda dos anos 20, o passeio era uma confusão histórica, imaginando invasores japoneses ao tiro a tudo o que mexia, riquexós com dândis ocidentais e revolucionários maoistas.
Do outro lado do rio, erguia-se já o Pudong, a nova área, futurista, da Xangai que estava para chegar. E chegou, já lá está.
Parecia um daqueles poemas cubistas do Fernando Pessoa: Chuva Oblíqua.
Do meu lado, os tais edifícios cinzentos do passado mítico, que os guias diziam ser ao estilo neoclássico de Chicago dos anos 20, emanavam uma opulência que a visão igualitária maoista (populista?) tinha transformado… em edifícios cinzentos.
Talvez o mais emblemático, ostentando uma cúpula sob a qual outrora se situava o clube da Royal Air Force, no topo de um edifício que fora a sede do Hong Kong & Shanghai Bank, e onde estava agora instalada a sede do município sem, naturalmente, pensar em entrar.
No extremo norte, onde se situavam os Jardins Britânicos, que tinham o tal letreiro “Proibida a Entrada de Cães e Chineses, estava o que agora se chamava Parque Huangpu. Com entrada livre, mesmo para canídeos que, de resto, não se enxergavam.
Os serviços alfandegários de outrora, continuavam a ser a alfândega e o famoso Clube Shanghai é agora o Hotel Dongfeng, que se pode visitar, apesar de não se conseguir lobrigar sinais do seu passado maroto de clube para cavalheiros ingleses.
Tudo isto me lembrava da tradição medieval em que os templos conquistados – mesquitas, por exemplo – eram transformadas em catedrais.
Entretanto o “Bund” era partilhado por milhares de chineses, alguns tentando vender qualquer coisa, outros simplesmente passeando e muitos namorando.
Estava frio. Tanto que vi um homem já idoso com uma proteção em pele que protegia o nariz, com elásticos que seguravam proteções também de pele para as orelhas. Tentei tirar uma foto, mas ele mandou-me dar uma volta. E eu dei.
As passadeiras das ruas estavam muito mais do que sobrelotadas. Havia passagens aéreas que estavam também apinhadas. Nunca tinha visto tanta gente, nem sequer quando o meu pai me levava à bola.
A deambular pelas ruas de Xangai, entre milhares de almas pedestres, há pequenos detalhes que saltam à vista e perduram na memória. Um desses casos foi uma escultura enorme, de 3 metros de altura, que reproduzia uma bomba de asma que na altura eu usava: Ventilan.
Fiquei embasbacado junto ao Ventilan para gigantones. Estiquei o braço, afaguei a sua superfície, que era também de plástico azul com a tampa do bocal em azul mais escuro. Sentia-me numa Disneylândia para asmáticos.
Nestes meus passeios, faltava uma área imprescindível, uma vez que a cidade antiga estava irreconhecível, com muros e fosso defensivo destruídos, faltavam as antigas concessões internacionais, enfim, concessões é maneira de dizer, mas adiante, a verdade é que a concessão francesa situava-se muito perto do meu hotel e era das mais características.
Ainda são visíveis algumas das edificações e outras, novas, parecem manter uma estética distinta. A concessão inglesa, a americana, a russa e até a japonesa não pareciam conservar tão bem a memória, especialmente as últimas, que tiveram experiências invasivas que, naturalmente os chineses não perdoaram, sobretudo no caso do Japão, tendo em conta a sua ferocidade e selvajaria para com os habitantes da China.
Algo de Tintim
Naturalmente, as aventuras de Tintim na China, nomeadamente, o Lotus Azul, não encontravam eco em parte alguma na Xangai que visitei. Quase.
Houve um local que podia muito bem ter sido desenhado por Hergé, ou pelo chefe dos seus desenhadores, Edgar P. Jacob, posteriormente famoso pelas suas Aventuras de Blake & Mortimer. Esse local é o bar do Hotel Peace, especialmente a sua orquestra de Jazz.
Sem qualquer tipo de dúvida, os músicos podiam ter saído da pena de Hergé, que na verdade se chamava Georges Prosper Remi, e podiam – e estavam – desde os anos 30 a tocar a música para grandes orquestras, mesmo que aquela não fosse assim tão grande.
Curiosamente, 10 anos depois, o nosso Presidente Jorge Sampaio foi fotografado, precisamente ali, no meio da orquestra. Está em artigo de jornal, que aqui reproduzo.
Na altura, o anacronismo era gritante. Mesmo considerando que o jazz era um tipo de música relativamente aceite nos países socialistas, sendo proveniente de negros, oprimidos pelo sistema capitalista e tudo o mais, era impressionante ter sobrevivido a Mao e à Revolução Cultural e à sua viúva, claro.
Para aumentar o anacronismo, um dos muitos japoneses que assistiam, levantou-se e plantou-se à frente dos músicos, fingindo ter um microfone nas mãos, num qualquer karaoke do nosso vasto mundo.
Ouvir música, não lhe era suficiente.
O Peace Hotel foi adquirido por uma cadeia de hotéis (Fairmont) que, já em 2024, anunciava a orquestra com média de idades de 80 anos, com concertos diários, das 18:00 às 24:00, mas agora com um ou uma cantora. Terá ele ou ela também 80 anos?
Gostava de saber.
Consoada
Foi, mais uma vez a receção do hotel que me aconselhou o Restaurante da Amizade para a consoada.
Na China daquela altura, o estado criava lojas, restaurantes, cafés e hotéis especialmente para turistas.
Havia também os hotéis para Chineses Ultramarinos, mas isso é outra coisa.
O problema é que nesses locais de “amizade” os pagamentos eram obrigatoriamente em FEC, o que tornava tudo bem mais caro. Não era o dobro, era muitíssimo mais.
Naqueles primeiros anos de Deng Xiaoping no poder, depois da épica fuga ao Bando dos 4, incluindo o esconderijo no famoso galinheiro de Chengdu, na sua Sichuan natal, que lhe serviu de casa enquanto os esbirros de Jai Qing, líder do Bando dos Quatro procurava o pequeno Deng por todo o lado.
Ele era o principal inimigo, depois de ter sido o delfim de Mao. Aliás, precisamente por isso.
Já Jian Qing, viúva de Mao Zedong, acabou a fazer bonecas de trapos na prisão de Qincheng.
Mas regressemos à consoada. Sendo Natal coiso e tal, sempre é uma altura para esportular quantias mais abastadas e lá me decidi. Há coisas que pagamos para ver. De resto, o rececionista avisou que o restaurante estava decorado para a ocasião e tinham até uma prenda para os comensais. E foi uma das coisas que paguei para ver.
Quando cheguei ao Restaurante, ele exibia um claro esforço natalício, incluindo uma árvore (era uma acácia, mas enfim) toda enfeitada. Os enfeites eram basicamente tiras de papel higiénico cor de rosa, contudo, mais uma vez, enfim…
Conduziram-me ao meu lugar numa mesa com mais 8 estrangeiros de variadas nacionalidades, mas que diabo, os estrangeiros entendiam-se todos por igual, ou seja, estrangeiro é estrangeiro e vai dar tudo ao mesmo.
Ao sentar-me dei de caras com a colher da foto. Esta colher. Na altura acompanhada por faca e garfo a condizer, atadinhos com um fita de embrulho cor de rosa, a fazer “pendant” com o papel higiénico. Era o meu presente de Natal, como de todos os consoantes estrangeiros, genuína simpatia da Amizade do restaurante.
A faca e o garfo não resistiram aos muitos trambolhões de quase 40 anos de vida. Porém, a colher, a mesmíssima, estava ali hoje mesmo, sossegadinha, na gaveta da minha cozinha, juntinho a todas as outras. Mas esta… bem, esta fala.
E futebol
O regresso, no mesmo comboio, quase nada teve de diferente. O quase foi, o reboliço que presenciei pelo corredor, muitos – tantos – todos de malga na mão, correndo para a cozinha.
Que se passa?
Lá me explicaram que tínhamos entrado na província de Cantão e mudaram os cozinheiros. Acontece que a culinária de Cantão é famosa em toda a China. Para mim, não era novidade, mas sem dúvida que a qualidade – e variedade – melhorou.
Cheguei a Cantão demasiado tarde para conseguir um autocarro para Macau.
Fui para um hotel destinado aos tais Chineses Ultramarinos e tive a sorte de ser aceite, o que não acontecia sempre porque eu, obviamente, não era chinês.
Fui logo para o quarto e deitei-me na cama, refastelado, ligando a televisão para ver o que existia.
Fui mudando de canal, sem grande esperança, quando vi um jogo de futebol.
Pessoalmente, nunca tinha sido apreciador do espetáculo. Já futeboladas com amigos era outra coisa completamente diferente. Mas aquele era especial.
Antes de mais, estava tudo branco com tanta neve a cair. Era tanta que tinham de jogar com uma bola fluorescente.
Era uma coisa nova.
Porém, quando comecei a prestar mais atenção a quem andava aos pontapés à bola, algo me chamou a atenção.
Primeiro foi coisa do equipamento, com listas verticais azuis e brancas. Depois foram os atletas, um em especial, demasiado pequeno para ser tão habilidoso, era inconfundível: Rui Barros.
Não pode ser! O Porto? Mas a jogar onde?
Depois de chegar a Macau informei-me. Era a Taça Intercontinental, disputada no Japão, contra o Peñarol e que o Porto ganhou. Mas isso já eu sabia: tinha visto!
Está bem, foi em diferido, mas que interessa? Tinha estado noutra galáxia e tinha aquela cereja no topo do bolo.
E talheres novos.