Antecipando o Futuro

Naquela madrugada, o meu curto sono foi interrompido por um buzinar estridente. Fui à janela ver o que se passava. Um autocarro estava parado na paragem e os passageiros estavam a entrar nele e a ocupar os seus lugares.

Sem pensar, apanhei o livro que estava a ler antes de adormecer e corri, ainda em pijama, para o apanhar também. Fui o último a entrar.

Esbaforido, perguntei ao motorista qual o destino daquele autocarro. Este, sorrindo enigmaticamente e sem me responder, fechou a porta da viatura e deu início à viagem.

Reparei que os passageiros que entraram antes de mim vestiam, quase todos, como eu, as roupas com que dormiam. O autocarro não estava cheio, mas ninguém falava. Escolhi um lugar e sentei-me.

Lá fora ainda estava escuro, e a paisagem aguardava a chegada da luz da manhã para se revelar. Acomodei-me no meu lugar, olhei a capa do livro que trouxera comigo – “Ensaios”, de T. S. Eliot – e abri-o na página onde estava o marcador, mas fui surpreendido por um pavor súbito. Com a pressa de sair de casa tinha-me esquecido dos óculos na mesa de cabeceira. Sem eles, a leitura seria impossível e a viagem iria ser, certamente, monótona.

Desconsolado, limitei-me a fechar os olhos e a esperar que o sono me dominasse. No entanto, este demorava a chegar e os meus pensamentos acabaram por se perder por caminhos impensáveis.

O autocarro ia recolhendo passageiros nas paragens do percurso, até que, finalmente, ao fim de um tempo indeterminado, pareceu-me que tinha chegado ao seu destino final.

Entretanto, no seu lento deambular, o sol tinha clareado um pouco o dia. Mas a neblina espessa revelou-me apenas uma paisagem pouco nítida e uns vultos difusos que aguardavam na paragem final.

Em silêncio, os passageiros começaram a sair e, cada um deles, ia ao encontro de determinados vultos expectantes.

Quando eu desci, olhei em redor e, com espanto e uma alegria incontida, reconheci imediatamente os meus pais e a minha mulher.

Corri para os abraçar e beijar, mas senti-os frios e algo distantes, como se fossem sombras.

O meu pai, no seu habitual modo brincalhão, disse-me logo que eu estava atrasado e que ele precisava da minha ajuda para a reforma da casa.

A minha mãe, limitou-se a dizer, num murmúrio cheio de ternura, que tinha feito o meu guisado preferido, mas que, com tanta demora, até podia já estar queimado.

A minha mulher, com os seus olhos brilhantes que espelhavam amor, mas com uma crítica velada na voz cristalina disse-me que estranhava muito eu nunca ter atendido as inúmeras tentativas que ela tinha feito para se comunicar comigo.

Aparentemente, eles ignoraram ou consideraram pouco convincente a minha desculpa de que eu não sabia como avisá-los, pois, desconhecia totalmente onde se encontravam.

Naquele encontro inesperado, tudo me pareceu vago, impreciso. Em vez do esplendor cósmico do reagrupamento de seres que se amaram muito e cuja convivência só foi interrompida pelas mortes sucessivas no eterno ciclo da vida, deparei-me com espectros fugidios, de alguma forma zangados comigo, e tão arredios e imateriais como as recordações.

Levaram-me para casa, que estava ali mesmo ao lado escondida em sombras difusas. Era a mesma casa da minha infância e juventude. Olhei-a com um frémito de saudade e senti que tinha recuado no tempo.

Nesse momento, despertei. Tinha sonhado um sonho que me levou para outra dimensão, inimaginável.

O sol inundava agora de luz e cor o meu quarto e eu pensei: afinal, a vida é tão absurda que se limita a ser simplesmente um caminho para a morte. Para quê, então, procurar dar-lhe um sentido?

Reinaldo Ribeiro

04MAR2020

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