Arte-Xávega na Meia-Praia: A Companha de José Bala
Ainda não é dia e quase 60 pessoas – a companha de José Bala – empurram o “José Fernando” num caminho feito de pequenos troncos para ajudar o avanço da embarcação pela areia ao encontro do mar doce da Meia Praia .
Apenas José Bala e mais dois camaradas vão no barco que se afasta da praia sob os olhares atentos de toda a companha, soltando mais e mais cala, até ficarem suficientemente longe da praia e começarem o seu trajeto paralelo largando as duas asas da rede, com o saco no meio.
Na praia, todos ostentam orgulhosamente a cinta com que mais tarde irão proceder ao calamento, o puxar da cala – da corda – e depois da rede, até chegar o saco.
Conversa-se sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo que se observa com atenção a evolução da lancha lá no longe do mar, todos expectantes, um olho no barco e na rede, outro no balde onde mais tarde levarão a sua parte de peixe.
São muitos, de todas as idades, mas a maioria já com os cabelos brancos a denunciar a experiência. Como mais tarde um jovem de chapéu da moda e barbicha verde confessava “isto é um serviço social, primeiro, dá exercício a muitos idosos, depois, dá de comer a muitos que estão encalhados na vida”.
Nota-se que no meio também há banhistas, turistas e curiosos, mas que não precisam da Xávega para sobreviver.
O “José Fernando” começa, finalmente o seu caminho de regresso trazendo a Cala Barca na mão de Manuel Pacheco, que desembarca para ficar a coordenar as operações em terra, enquanto José Bala, sozinho regressa de novo ao longe, acompanhando a evolução da rede pelo mar, com especial atenção ao saco, que mais tarde irá aparecer, carregando consigo o peixe e todas as expetativas da companha.
Inicia então o tradicional e característico “bailado” da “Arte-Xávega. Com um pequeno jeito, junto ao mar, enlaça-se a corda da cinta na cala e puxa-se vagarosa e ritmadamente pela praia fora até ao ponto onde se vai enrolando a corda. Volta-se então à borda de água e volta-se a enrolar a cinta e entrar na fila de homens e mulheres que insistem em lavrar o mar, puxando a rede lentamente, desde lá longe, mar fora, atravessando as ondas e os tempos.
Manuel Pacheco, vai dando ordens, força, mais para aqui, força, unindo pouco a pouco as duas filas de caladores. É da Meia-Praia e tem 67 anos. Há vinte e tal anos que anda nesta vida. Antes, chegou a acumular com um emprego estável na Câmara Municipal de Lagos, mas agora está reformado. Reconhece, porém, que “não quer outra coisa”.
Finalmente, quase em apoteose da curiosidade, chega o saco à areia e à vista de todos, retangular, marulhante de peixe prateado. Que é pouco, que não é muito, que podia ser mais, que noutro dia eram toneladas. Mas há satisfação na cara de todos.
Chega também finalmente, José Bala e o “José Fernando”, que encalha suavemente na areia. Manuel Pacheco começa logo a invetivar a companha para levar o barco para cima e deixá-lo varado na areia. Lá voltam a construir o caminho de pequenas traves de madeira, lá se encostam todos novamente a empurrar o barco areia acima.
Reage com surpresa quando lhe dizemos que há muitos que pensam que a Xávega morreu no Algarve. “Morreu? Tenho esta licença há 112 ou 115 anos, já vem da família, nunca se parou.”
Ao mesmo tempo confere se todas as operações estão a correr como seria de esperar. Continua: “já não usamos o Calão, o barco tradicional, mas aquele que está no Museu de Marinha era desta companha, agora é com este mais pequeno, que exige menos gente e menos força”.
Parece que ouviam. Gritam força, força! E o “José Fernando” lá vai subindo com esforço, todos a olhar o saco e a fazer cálculos ao peixe que irá encher – ou não – o balde que trouxeram. Ouve o rapaz com o chapéu da moda e concorda. “estes velhotes? tiro-lhes dez anos de cima!” comenta. Mas lamenta-se da incompreensão, dos obstáculos, de não lhe darem licenças apropriadas criando problemas ao seu trabalho e apresenta o cúmulo: “se não vender 6300 euros de peixe na lota no fim do ano cancelam-me a licença! Como pode isto ser? O peixe vai todo para o pessoal, mal dá para se comer!”
José Bala tem 62 anos, nasceu na Meia-Praia e anda na xávega desde os 12. Conheceu Pacheco na tropa e, também ele teve outros mesteres, “mas sem nunca largar o mar… Se me tirassem o mar morria!”