AS ARRIBAS DO MAR, por Bulhão Pato
Ao completar o centenário da sua morte há alguns dias, a Gandaia gostaria de comemorar um dos mais famosos escritores da região – morreu na Torre do Monte da Caparica – com a publicação de um texto deste autor, enviado pela nossa amiga Maria João Sousa Martins, que muito agradecemos. Pode ler mais sobre a biografia de Bulhão Pato aqui.
AS ARRIBAS DO MAR, por Bulhão Pato
Há dias, abrindo o jornal – A Caça – deparou-se-me um artigo intitulado: Législation sur la chasse. Dizia: …«Je revois encore les dunes sauvages qui s’étendent de Trafaria à Costa, où j’ai fait ma première chasse avec Bulhão Pato; les riziéres et les côtes boisées du vallon d’Apostiça, etc.»
O artigo era de Sampaio Osborne, que esteve em Portugal cerca de 25 anos; rapaz muito inteligente, ilustrado, da família do conde da Póvoa e primo da casa Palmela. Caçador de sangue. Um desastre varou-lhe com um tiro, em França, uma das mãos, não sei se a direita, se a esquerda. Continuou, apesar disso, a ser espingarda de primeira ordem e, o que é mais, ao piano primoroso artista.
Durante largo tempo bateu as tapadas e montados com os reis do trono e os reis da caça.
É provável que não o torne mais a ver. Daqui lhe envio um cordial e saudoso aperto de mão.
Em 1859 José Augusto Sacotto Galache e eu principiámos as nossas caçadas no Juncal da Costa. Pelas arribas as perdizes saltavam aos bandos; na planura as codornizes, as narcejas e outra caça de arribação abundantíssima. Vivíamos em Buenos Aires.
No Inverno, noite ainda, Lourenço da Pinha estava no cais de José António Pereira, com os seus três filhos: o mais velho José, o segundo João, o terceiro Francisco, este muito mocinho ainda para as fainas da travessia do Tejo, às vezes bravias. É piloto da Barra há já muitos anos. Lourenço da Pinha nascera em Olhão, terra de marítimos, que folgam com o esbravejar das ondas como as aves marinhas. Moço, veio para Belém e, ora com a mão no leme e na escota, ora no punho do remo, sempre de ânimo folgazão, coartada pronta e verboso como algarvio, lá foi mareando o barco, sustentando a mulher e criando os filhos. Morreu há bastantes anos, mas por todo o bairro de Belém e por todo este almaraz lhe relembram o nome honrado e benquisto.
José Augusto Galache, sem jactâncias nem farroncas, era um rapaz que não tinha medo do diabo à meia-noite. Agora lá está na sua propriedade do Freixo, ao pé de Vale de Lobos, tratando da sua lavoira, beijando a terra para manter as forças, sempre jovial e gentil-homem. A bravura e galhardia do cabo de forcados nas toiradas de amadores no Campo de Santana foi tal que ainda hoje corre na lenda entre os novos.
Um dia, em Dezembro, véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos. Tempo seco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos:
– Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.
Havia águas de monte e o barco, mal clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda.
Os dois rapazes acompanharam-nos, e o pai ficou guardando o barco à nossa espera. Os terrenos planos e à beira-mar do Juncal eram lenteiros, enchabocados, como dizem os homens do campo e os caçadores. Nós tínhamos dois cães soberbos: o Black de José Augusto e o meu Faliero. Ambos muito bem parados, cobrando de ferido, e trazendo à mão toda a espécie de caça. Depois do ímpeto da primeira batida sentámo-nos num medão de areia, acudimos ao almoço, que vinha nas redes, e matámos a fome. Engolfámo-nos Juncal dentro. Quando demos por nós estávamos muito adiante das barracas da Costa.
O estômago não tinha a mais leve memória do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o apetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? À sorte.
Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco. Uma casa de um só andar, com armas reais, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarca D. João VI, que foi ali por mais de uma vez.
De pedra a cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. Íamos andando por aquele labirinto de cubatas e à porta de um ferrador demos com uma rapariguinha dos seus dez anos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, socos, cabelo em trança e bem tratado.
– Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?
– Pois não há, meus senhores!… É a tia Maria Rita do Adrião – acrescentou, dando à sua voz cristalina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.
Levou-nos à tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta anos frequentei aquela casa com o melhor dos meus amigos. A Claudina, a rapariguita que fora a nossa salvação e a nossa guia, passados tempos casou e, já mãe de filhos, depois de eu estar neste Monte, morreu, coitada, de uma pneumonia. Maria Rita do Adrião vive ainda; há dois anos que veio visitar-me, na sua burrita, muito lépida, com os seus noventa e três. Teve sempre boa estrela; até na sua visita a minha casa o azar apenas lhe deu um rebate falso. Quando voltava para a Costa perdeu um objecto de certo valor, creio que um brinco, que mão piedoso achou e foi logo anunciar no Século.
Depois de devorarmos o jantar e pelos barqueiros mandar aviso aos nossos, Sol alto ainda, saímos até à praia. Era véspera de Nossa Senhora da Conceição, a grande festa anual da terra. Os habitantes é que estavam descoroçoados e tristes; a sardinha, a famosa sardinha da salga, não tinha dado nada ou quase nada. Mais uns dias de escassez e lá se iam as esperanças… o pão por muito tempo! Mar calmo. Na crista dos médãos, homens, mulheres, rapazes, mudos, imóveis, olhos cravados na companha, que lá muito ao largo vinha regressando. De manhã os alcatrazes, de asa fechada, caindo do alto como raios, picavam a flor das águas, indício de grandes negras de sardinha. Pelo cariz do tempo, o lanço devia de ter sido grande. Chegaria a salvamento ou rebentaria o saco?! Silêncio profundo nos de mar e nos de terra. O silêncio é sinal certo de grande preocupação de espírito nos moradores de povoações marítimas, tão vivos e loquazes.
Ao rés do mar grandes grupos moviam-se visivelmente inquietos. Com o Sol, que já no ponente batia o areal, aquelas figuras pareciam tomar proporções gigantescas, cingidas de nimbos de oiro. O Sol, as montanhas, o mar, as soberbas e solenes paisagens, em vez de apoucarem o homem, engrandecem-no. Numa linha de fortificações ondulada de montes e crespa de píncaros, antes de romper o assalto, os ajudantes-de-ordens, cruzando-se na carreira, a dois exércitos podem afigurar-se hipogrifos fantasiados pela veia fecunda de Boiardo ou de Ariosto. A paisagem parece dar e receber, às vezes, comoções trágicas. O facto é que exerce nos espíritos acção profunda, embora ignota. Uma tempestade, nas serranias ou no oceano, improvisa heróis, como os relâmpagos das espadas e o trovão das baterias no campo da batalha.
À beira de água principiou a correr um torvelinho, levantando pirâmides de areia. De repente uma lufada súbita correu violenta. Os pródromos do furacão têm rugidos dolorosos como os do leão na entrada da febre. Daria numa tempestade? Quantos corações ficaram apavorados em tal momento!
Os barcos aproximaram-se de terra. A multidão silenciosa. A vaga alta como de mar movido ao longe, embora não arrebatada. Num ai tudo salvo ou tudo perdido! O saco… a montanha de prata, estava a salvamento na praia. Raros olhos ficariam enxutos vendo rebentar a alegria daquele povo!
O Sol, disco de fogo, tocava a superfície das águas, que serenavam, passada a borrasca efémera, permitindo que olhos humanos se cravassem no seu ocaso esplêndido. Em breve a linha arenosa e já desmaiada, que segue até o Cabo, a baía de Cascais, os picos de Sintra, os montes e povoações do norte, o Tejo dormente, desvaneciam-se no breve crepúsculo das tardes de Inverno. O farol do Espichel, girando as suas aspas de fogo intermitentes, parecia abrir sulcos luminosos pelo mar levemente enrugado. Bugio e São Julião acendiam-se. As estrelas estremeciam no firmamento límpido. Noite coroada de lumes. A aragem era um alento virgínio, e a vaga na praia um suspiro amoroso. As redes voltaram ao mar. A companha bradou a uma voz:
– Avé, Maria puríssima!
Monte, 1904
In Memórias, Tomo III: Quadrinhos de outras épocas, Lisboa: Perspectivas & Realidades, 1986, pp. 221-225