As Vinhas da Ira

Naquele dia, dirigindo-se à jovem plateia presente, ele começou com uma expressão que lhe era habitual quando se referia à sua própria juventude:

No meu tempo, li um livro que viria a marcar para sempre a minha forma de encarar o mundo e, principalmente, a compreender e a indignar-me com o modo como os homens se relacionam entre si.

Refiro-me ao livro, As Vinhas da Ira, de John Steinbeck lançado nos Estados Unidos, em Março de 1939, logo após a Grande Depressão que abalou aquele país e que teve graves repercussões no mundo inteiro. Não sei se já tiveram a oportunidade de o ler, mas é uma leitura que recomendo vivamente, pois é uma obra que expõe as relações humanas baseadas num sistema de exploração materialista do trabalho.

Aproveito a vossa presença para fazer um resumo do tema deste livro.

É a história da família Joad do Oklahoma que, na década de 30 do século XX, é obrigada a deixar as terras arrendadas onde trabalhava. Os bancos, os verdadeiros donos dessas terras, com quem eram obrigados a dividir os lucros, obrigam-na a abandoná-las, por não pagarem as dívidas que contraíram na compra de alfaias agrícolas, devido às adversas condições climatéricas que lhes devastaram a plantação de algodão. Viram-se, assim e de súbito, atirados para a miséria e para a fome.

Na euforia do progresso da década de vinte, os rendeiros, tentaram realizar o american dream que, na sua génese, era um conjunto de ideais nos quais a liberdade incluía a oportunidade para a prosperidade e sucesso, além de uma mobilidade social alcançada através do trabalho árduo. Porém, o Sul dos Estados Unidos foi assolado por uma seca imensa e por tempestades de poeira, que enegreceram os horizontes de ponta a ponta, e que destruíram as plantações de milhares de americanos ferozmente agarrados às suas terras. As dívidas, o desemprego, o desalento e a fome abateram-se sobre milhões de pessoas e forçaram-nos a partir em busca da sobrevivência.

Steinbeck relata-nos, com uma crueza espantosa, a epopeia desta família durante a sua perseguição do sonho. A viagem foi motivada por um panfleto que oferecia trabalho nos grandes pomares da Califórnia, o qual levaria milhares de famílias expropriadas e desvalidas a deslocarem-se para lá.

Os Joad, conseguem comprar uma velha camioneta com os poucos dólares que dificilmente juntaram para fazerem a longa travessia de vários milhares de quilómetros. E partem.

Ao longo da famosa Route 66, desde Oklahoma até à Califórnia, são descritas as paisagens, as misérias, as mortes na família, a travessia do deserto durante a noite, as dificuldades, a angústia, a solidariedade, a luta contra os elementos, a esperança e a fome constante. Como diz o autor: “a fome multiplicada milhões de vezes, fome na alma, fome de um pouco de prazer e de um pouco de tranquilidade, músculos e cérebros que ansiavam por crescer, trabalhar, criar para além das necessidades, multiplicados milhões de vezes”.

Como em tantas situações, em que a ambição de uns cresce sobre a fragilidade de outros que acabam sendo derrotados e destruídos, também na história deste livro, um tractor, como um tanque de guerra, revolve a terra e expulsa os mais fracos das suas terras.

É interessante notar nesta expressão, porque aqueles que odeiam as mudan­ças e temem as revoluções são os donos do tractor. É preciso, pois, manter os expulsos da terra afastados e provocar o ódio, o receio e a desconfiança entre eles. Caso contrário, a expressão, “fui expulso” pode transformar-se em “fomos expulsos”, e aí reside o perigo que os poderes – todos os poderes – evitam. É aplicação prática do conceito do ditador romano Júlio César; divide et impera “dividir para reinar”.

Ao longo da Route 66, os deslocados juntavam-se nas bermas da estrada, nos acampamentos temporários e, irmanados pelas mesmas necessidades partilhavam o pouco que tinham das misérias que carregavam.

Logo que chegaram à fronteira da Califórnia foram incomodados pelas autoridades locais que não os deixavam levar sementes ou vegetais, não queriam invasores – a versão xenófoba da época –, nem queriam que eles ali ficassem muito tempo acampados. Eram obrigados a seguir em frente, sempre em frente. Grupos de homens californianos juntavam-se e obrigavam os Okies – palavra pejorativa que designava os migrantes que procuravam trabalho – a abandonar a região pela força e com o respaldo da polícia. Esta pagava aos jovens alguns cêntimos para provocarem brigas que dariam o pretexto à polícia para invadir os acampamentos e destruí-los.

As leis, se existiam, eram feitas de modo a beneficiar os interesses dos exploradores da mão-de-obra daqueles que se auto-escravizavam para alimen­tar as famílias, mas não permitiam o descanso, nem um pouco de tranquilidade a tantos milhares de famintos.

Se os donos da terra precisavam de 500 trabalhadores viam aparecer 5000. Antes de os contratarem deixavam que a fome os fosse consumindo, então ofereciam-lhes um salário aviltante. Grande parte deles desistia logo, mas outros, movidos pelo desespero aceitavam, sempre ganhariam para comprar um pedaço de pão para os filhos. Regra geral, o patrão instalava uma cantina na propriedade onde eles podiam comprar os alimentos. Em pouco tempo deviam mais à cantina do que ganhariam e transformavam-se em escravos do patrão (esta técnica foi abundantemente utilizada nas sociedades coloniais).

O preço contratado de manhã era rebaixado à tarde.

No entanto, junto com a fome do corpo também havia a fome de alguma diversão: contavam-se histórias à volta das fogueiras, alguém tocava gaita, guitarra ou um violino e dançava-se. Era a forma possível de fuga à realidade adversa. No meio da miséria e da fome havia ainda um pequeno espaço para o amor e até para a renovação da vida.

Além da fome, da xenofobia, das perseguições, chegou ainda a chuva que tudo alagou, e também o frio com a sua carga de horrores. Não tardou para que as doenças chegassem aos acampamentos, e trouxessem a miséria extrema e a morte. Terreno propício para a ira fermentar.

No último parágrafo, Steinbeck descreve-nos a cena de uma mulher que, dias antes, tinha parido um nado-morto e que encontra um homem a morrer de fome. Num gesto de solidariedade extrema, obriga-o a mamar o leite que ela não dará ao seu filho.

Meus jovens amigos, com este resumo do livro As Vinhas da Ira, procurei realçar a tendência social, a piedade pelo sofrimento alheio, o protesto e a revolta perante as injustiças do mundo.

O livro representa o confronto entre indivíduo e sociedade, a situação do homem moderno diante das dificuldades, a pobreza e a privação num universo feroz, protagonizado por vítimas da competição e párias sociais.

O autor exibe na vida e na arte paradoxos, provocados pela tensão entre instinto e mente, natureza e história, a civilização e os seus descontentes, que lhe conferem uma nobreza inequívoca.

Para terminar, quero dizer-vos que o livro, As Vinhas da Ira, causou polémica no seu país e foi queimado em várias cidades.

Foi considerado um livro chulo, obsceno e exagerado e o seu autor foi chamado de comunista e o mais perigoso radical da costa oeste americana, tendo logo sido investigado pelo FBI.

As Vinhas da Ira é um romance profético. A sua história passa-se na Grande Depressão, mas serve como um espelho da crise que vivemos hoje. O autor retrata a intervenção do Estado e a organização dos trabalhadores como alternativa à exploração.

Hoje, John Steinbeck, é pouco conhecido, mas precisamos de o ler mais para compreender a obra-prima de um romancista de excepcional grandeza, e que é afinal tão actual. 

Reinaldo Ribeiro 

02JUN2020

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