Cavaleiros do R Triplo

Na paisagem verdejante do vale ecoa, como um tambor longínquo, o som abafado dos cascos de cavalos sobre a erva ainda orvalhada.

São três belos animais, de pêlo negro e luzidio, que marcham num trote elegante e firme.

Os seus cavaleiros fazem um todo com as montarias por­que as suas armaduras, elmos, escudos e armas são igual­mente negros e brilham sob os raios do sol da manhã. Mais atrás vêm os servos e peões.

O grupo parece fazer parte de uma ordem ou irman­dade guerreira e religiosa, atendendo à semelhança do seu equipamento. Cada homem leva na extremidade da sua lança, que oscila ao ritmo do trote ligeiro, uma flâmula onde sobressai sobre um fundo dourado um monograma bordado com um miste­rioso “R” triplo.

Aqueles são homens valorosos temperados na arte da guerra. Lutaram com Geraldo Geraldes, dito ‘O Sem-Pavor’, na reconquista cristã daquela região e, dois deles, orgu­lham-se, até, de terem participado no cerco e na conquista de Lisboa, ao lado de Afonso Henriques.

Foi com o esforço de muitos guerreiros como eles, que toda aquela grande planície foi recentemente libertada do do­mí­nio muçulmano, tendo estes sido empurrados para as terras do Algarve e do Al Andaluz, não muito distantes. Por este motivo, sentem-se relativa­mente confiantes e seguros e não receiam ser impor­tunados.

A desenvoltura e a alegria da sua cavalgada indiciam que vão em missão pacífica.

Na realidade, dirigem-se para um castelo situado junto à raia onde os aguardam os festejos que irão realizar-se por ocasião do casamento da filha do caste­lão, bem como para homenagear o senho­rio daquelas terras.

Esperam-se dias de grandes folguedos e diversão, não só para o povo mas, principal­mente, para os “homens de armas”. O torneio e as justas que irão ocorrer são aguarda­dos com grande expectativa pelos cava­leiros e pelos seus aios e escudeiros.

Eles contam chegar ao castelo dentro de três dias, sem esfor­çarem os cavalos, nem os homens. Vão usufruindo das belezas daquela região tão aprazível, onde já se notam os sinais de um inci­piente povoa­mento cristão.

Dos cumes arborizados das colinas do nascente que moldam o vale, escuta-se um tropel súbito.

Habituados a viver em permanente sobreaviso, os três homens viram-se em simultâneo para o lado de onde vem o ruído. Avistam um numeroso grupo de cavalei­ros, indistinto ainda porque tem o sol nas suas costas. Vem da espessura de um pinhal e galopa pela encosta na sua direcção. Do lado contrário do vale há uma formação rocho­sa para onde os três cavaleiros com os seus homens se dirigem rapida­mente.

Os ginetes relincham com os puxões violentos das rédeas presas aos bridões que os obrigam a uma brusca mudan­ça de direcção e de andamento.

A desproporção numérica entre os dois grupos é assombrosa. Se aquele grupo for hostil irá ser uma peleja rija e difícil.

Não demora muito para que os esvoaçantes alborno­zes e os turbantes dos mouros os identifiquem. Não há dúvidas de que eles terão de enfrentar inimigos e lutar.

Os cristãos não excedem uma vintena, entre cavalei­ros, escudeiros e pajens e recuam até à parede rochosa. Sempre ficarão protegidos pelas costas.

Com o grito medonho de “Allahu Akbar”, os sarrace­nos aproximam-se dos cristãos. Os seus poucos arquei­ros dispa­ram todas as setas que podem quando os têm ao alcance e derrubam alguns dos mouros que cavalgam na frente. Nesse momento os três cavaleiros de negro esporeiam as suas montadas e aos gritos de “Por Santiago!” investem contra a fileira dianteira das hostes mouras e quebram as suas lanças contra os primeiros que chegam.

Rolando, o mais velho dos três, logo empunha o seu montante e, segurando-o com as duas mãos, desfere golpes sobre golpes sobre os inimigos com uma força inimaginá­vel para um homem da sua idade. Os escudos, os elmos e as curtas cimitarras dos mouros são ineficazes perante tão grande violência e, um a um, os seus opositores vão sendo derrubados. À volta daquele homem idoso começa a abrir-se uma clareira com o chão juncado de cadáveres e de feridos. O braço hercúleo e valente de Rolando elimina todos os que ficam ao alcance do seu poderoso montante.

No seu lado direito, Raimundo, seu filho, não dá des­canso à espada e, erguido sobre os estribos do cava­lo, golpeia indistintamente os quatro ou cinco mouros que o cercam e, embora muitos deles sejam abatidos, logo outros surgem para os substituir. Os curvos alfanges cruzam-se com a sua espada a um ritmo crescente e embatem nos escudos já amolgados produzindo um ruído metálico constante a que se junta o relinchar dos cavalos, os gritos de dor dos feridos e o vozear excitado dos combatentes.

Rodrigo, combate à esquerda do seu avô, Rolando, de quem procura seguir o exemplo, bem como o do seu pró­prio pai. Com a energia e o vigor da sua juventude embebe a lâmina da sua espada, vezes sem conta, com sangue mouro enquanto incita os seus companheiros, que já são poucos, gritando sem parar o nome de Santiago.

Perante a tenacidade dos guerreiros cristãos, o ímpeto dos muçulmanos parece, em certo momento, estar a dimi­nuir, quando uma flecha atinge o ginete de Rolando que arrasta na queda o seu cavaleiro. Apeado, sem escudo e só com o montante, que lhe é de pouca valia no chão, o velho guerreiro torna-se num alvo. Uma lança acerta-lhe em cheio no peito e Rolando sente os joelhos dobrarem-se, no momento em que uma cimitarra mourisca se abate sobre o seu pescoço.

Consegue, ainda, balbuciar entre borbotões de sangue o nome de Santiago – o seu padroeiro – antes que o seu corpo, temperado em tantas batalhas pela fé, tombe definiti­vamente sobre a erva verde do vale.

Raimundo desvia a atenção para olhar o pai e esse gesto foi-lhe fatal. Uma cimitarra perfura-lhe o corpo entre o fraldão e a couraça. Ele acusa o golpe e baixa-se ligeira­mente, quando um mouro lhe dá um golpe na viseira. O sangue esguicha-lhe abundantemente e cega-o. Tomba do cavalo e, no chão, não há quem lhe valha. Vários guerreiros sarracenos espetam-lhes as lanças no corpo indefeso.

De todos os cavaleiros cristãos resta apenas Rodrigo. No ardor da luta ele não se apercebe de que está só. À sua volta jazem os corpos de inúmeros mouros que atestam ter sido ele o verdadeiro campeão daquela peleja. A sua incansável tole­dana está romba e vermelha do sangue daqueles que não acreditam no seu Deus. Continua a lutar quando repara que todos os muçulmanos o cercaram.

Olha em volta e não vê o seu pai nem o seu avô nem qualquer cristão. Compreende então que chegou a sua última hora. Esporeia o cavalo e investe contra os inimigos gritando: “Por Santiago!”.

São as suas últimas palavras.

Na verdura do vale, junto aos corpos daqueles três gran­des guerreiros jazem agora as suas flâmulas com o R triplo sobre um fundo dourado.

One thought on “Cavaleiros do R Triplo

  • 18 de Abril, 2019 at 20:57
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    Não esperava uma crónica tua sobre os os três grandes guerreiros do R Triplo, mas de ti espero tudo, meu bom amigo.

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