Encontro e Acaso
O Encontro e o Acaso
Os anos passados nos prazeres (e desprazeres) da memória tinham-lhe deixado impressões vincadas. Impusera-se a insólita tarefa de desenhar o mundo com sonhos, desejos, risos, paixões e recordações, mas, com surpresa, descobriu, tardiamente, que com esse paciente labirinto de linhas, apenas tinha traçado a imagem nostálgica do seu rosto.
Na rua estreita, a invasão silenciosa das sombras daquela noite de Verão, sem lua, domina os mínimos recantos.
Algumas pessoas, junto de uma porta entreaberta, conversam, riem e fumam num pequeno grupo. São o único sinal de vida na melancólica ruela.
Lá dentro, comemora-se um aniversário. Ouvem-se risos, come-se, bebe-se, canta-se, toca-se música, e lêem-se poemas coreografados como se fossem pequenas peças de teatro. É uma reunião de gente alegre, culta e adulta, que já ultrapassou a fronteira do meio século, e que procura o divertimento de uma forma mais construtiva.
Na luta (não assumida) que trava contra a solidão que, aliás, considera uma condição absoluta e insuperável da existência, ele, que vive no lado ausente de todas as coisas, algumas vezes, socorre-se da saudável convivência com os amigos para obter algum alívio. É o caso desta noite, em que, alegremente, conversa com aqueles que se encontram na rua.
O tema da conversa não podia ser mais adequado àquele momento: discute-se a necessidade de todos os agentes da arte erguerem bem alto o seu estandarte, para que os governos tomem consciência de que, sem a expressão artística, as sociedades se tornam amorfas, materialistas e desprovidas de beleza. Neste ponto, as opiniões de todos os presentes são convergentes e unânimes: sem arte a vida é árida, insípida, agreste.
Nesse momento, saindo da sala e cruzando a nocturna claridade, ela junta-se ao grupo. É uma bela mulher, para ele desconhecida, desenvolta, alegre e irradiando simpatia.
Falaram frases circunstanciais e apresentaram-se.
Em poucas palavras verificaram que ambos tinham algo em comum: eram viajantes, ou antes, actores nos palcos do vasto mundo e observadores atentos de emoções alheias.
Estabeleceu-se, de imediato, uma atracção mútua. Talvez esta tenha ocorrido devida à força da serendipidade, essa misteriosa companheira do acaso, que pairava oculta nas sombras da rua transformada no cenário, improvável, de um encontro inesperado.
Ele, habituado à feroz solidão em que se enclausurara, e embora consciente de que todos necessitamos de alguém quando escurece, estremeceu perante a sua beleza e alegria. Como num sonho, deixou-se enlevar pela sua simpatia.
Nota-se que ela é impulsionada por um forte sentimento de liberdade individual. A seiva que lhe corre por dentro, provoca-lhe uma vontade invencível de conhecer outras culturas, outras gentes, quiçá, outros amores, e talvez tenha visto nele o reflexo desse desejo.
Atraídos, um para o outro, como num encantamento, esqueceram o mundo à sua volta e entregaram-se à prazerosa tarefa do descobrimento mútuo.
Mais tarde, quando o crepúsculo da manhã já despontava sobre as águas imortais do Tejo, com o céu matizado pela luz violeta de um vago tom de contentamento, os dois caminharam ao encontro desse fulgor pelo empedrado basáltico.
Vão enlaçados num amplexo esplêndido, cientes de que se conhecem desde sempre e que o acaso deste encontro só existe para quem está demasiado fora.
E sorriem!
Reinaldo Ribeiro
31OUT2017