Francisco Oneto Nunes sobre a morte dos dois pescadores do “Jovem”
Francisco Oneto Nunes, um dos mais profundos investigadores da Antropologia Marítima e da Arte-Xávega, nomeadamente em Vieira de Leiria, escreveu o seguinte texto no seu blogue Maio Maduro Maio incluindo esta foto tirada em 1995, sobre a tragédia que ocorreu em Ovar. Republicamos aqui, com os devidos agradecimentos e “apontador / link” para o texto original, na nossa forma de nos unirmos ao luto, às condolências e ao pesar. Não poderíamos expressar melhor os nossos sentimentos:
“Na década de 90 debrucei-me sobre as comunidades haliêuticas que vivem do que o mar lhes dá. De verão com a arte-xávega, de inverno com as majoeiras, nas obras, nas fábricas, ou onde houver emprego. Homens e mulheres de muito trabalho e vida dura, esforçada, sempre marcada pela morte de algum dos seus ou dos próximos. Neste ofício, os acidentes de trabalho matam mais do que na construção civil ou nas minas. O mar é seara e cemitério… e, por vezes, até, há fome entre as gentes do mar. Quando (já lá vão mais de vinte anos) vivi na Vieira e li a prosa dos grandes cronistas da gesta vieirense, José Loureiro Botas e António Vitorino, rendi-me à dimensão trágica deste modo de vida. Quem conheça os homens e as mulheres das companhas de arte-xávega e tenha lido o conto “Os Naufragados do Salsinha”, desse gigante vieirense, poeta, pescador e serrador (um ofício extinto), que foi António Vitorino, dificilmente evitará que as lágrimas lhe corram pela cara abaixo. O espectro da morte perseguiu-me sempre no meu périplo pelas praias do Litoral Central. Primeiro com os prosadores vieirenses e com a memória dos meus informantes, fixando na escrita as suas narrativas. Depois, no gueto da Marinha de Silvalde, a sul da rica cidade de Espinho, onde vi crianças a brincarem numa ribeira-esgoto, por entre lixo, pneus usados e carcaças de frigoríficos, “ilhas” com uma única sanita para quatro famílias, e onde, pouco antes de chegar, tinham acabado de morrer no mar três pescadores, cujas famílias nem dinheiro tinham para pagar o funeral. Depois, estava eu na Praia de Esmoriz, onde mulheres idosas e reformados trabalhavam nas companhas para complementarem as miseráveis pensões de reforma, e morreu um miúdo de 16 anos que trabalhava com o pessoal de terra, num acidente com o alador do tractor empregue para puxar a rede e junto do qual colhia a corda. Vi uma comunidade em choque, barcos parados, gritos e lágrimas. Senti o peso desse sofrimento antigo, perene, que revive a cada nova geração de gente pobre, excluída, que se deixa fascinar pelo mar e nele vê uma oportunidade para ganhar a vida, desafiando as ondas. Os anos passaram, mas a despeito dos melhoramentos em bairros como a Marinha de Silvalde, a arte-xávega continua um bastião de pobreza, desamparo e insensibilidade legislativa – como quando, há poucos anos, numa reportagem da jornalista Ana Leal, da TVI (“Morrer de sede em frente ao mar”), confrontando o ministro Jaime Silva com a fome entre os pescadores da Trafaria e da Caparica, este tem o descaramento de lhes sugerir que montem uma barraquinha para vender sandes e refrigerantes, para que tenham alguma “actividade produtiva”…