Há Racismo em Portugal – Entrevista Susana Silvestre
Quando, há tempos, a vice-presidente da associação Costume Colossal interveio numa reunião pública da Câmara Municipal sobre a situação discriminatória que vivem os ciganos em Almada, foi como se um mistério se revelasse. O Notícias da Gandaia quis saber mais sobre esta comunidade.
O que é ser cigano em Portugal?
Eu digo sempre: não existe uma comunidade cigana; existem comunidades ciganas. Como tudo na vida há factores que influenciam cada um de nós, como a educação e, quer queiramos quer não, factores socio-económicos. Por isso não existe uma comunidade. Eu, que não correspondo ao estereótipo, não estou fora do padrão, isto é, estou fora do padrão estereotipado, mas esse um factor que nos é externo e que foi atribuído por ignorância e preconceito. Como eu há mais, mas a verdade é que, para não serem descriminados no acesso ao trabalho ou à habitação, ou mesmo à educação, muitos ciganos são obrigados a esconder a identidade.
O que é a associação Costume Colossal?
Embora dirigida por mulheres a nossa associação é mista, mas gostamos de ter mulheres na direcção…
Porquê?
Porque as mulheres estão, cada vez mais, a ganhar poder. A ser empoderadas, como agora se diz. Mas uma das coisas que mais perguntam é realmente como é que nestas comunidades é a relação entre as mulheres e os homens, em termos de poder, claro. E a verdade é que cada vez mais a mulher cigana está ao mesmo nível que as mulheres portuguesas. Estamos a emanciparmo-nos e não é por isso que perdemos os nossos valores. Não estamos a perder a qualidade de mães nem a qualidade de esposas nem a qualidade de filhas. Estamos a começar a tirar a cabeça fora de água e, nesse processo a começar a ver que há muitas mulheres ciganas com capacidades enormes. A mulher portuguesa cigana está, com algum atraso, é certo, a seguir o mesmo caminho que as mulheres portuguesas e noutras partes do mundo seguem já há algum tempo. É um caminho que se está a fazer.
E o que pensam disso os homens?
Como já disse não podemos generalizar. Cada pessoa é um indivíduo e, no meu caso, eu vejo os olhos dos meus avós brilharem quando me vêem falar, o meu pai apoia-me imenso, o meu marido igualmente. Há todo um suporte familiar que nos ajuda, e eu tenho esse suporte na minha casa e na minha família. Aliás, se não o tivesse não chegaria aonde cheguei. E isso acontece com muitas mais famílias. No caso de muitas jovens que estudaram e se formaram os pais foram o maior incentivo.
Mas, ainda assim, como os outros homens, é vulgar pensar no homem cigano como machista…
Durante muitos e muitos anos os homens eram o sustento da família. O homem é que ia à fábrica, o homem era quem negociava os lotes. As mulheres, nessa época, estavam mais em casa, cuidando dos filhos, o que tornava mais ou menos natural que fossem os homens a ditar as regras. É como aquele ditado: quem dá o pão, dá o ensino. Não posso, claro, generalizar, mas hoje as coisas são muito diferentes.
Voltemos à vossa associação. Como é que nasceu a Costume Colossal?
A associação, que tem sede no Feijó – embora seja de âmbito nacional e sempre aberta a colaborar com outras organizações do género –, nasceu da necessidade que nós tínhamos de nos fazer ouvir. E porque percebemos que ao criarmos uma estrutura como a nossa associação seríamos olhadas de forma diferente, de uma forma que nos dá maior influência. Se pedirmos uma reunião individualmente encontramos muitos obstáculos. Porém, enquanto estrutura surgimos como uma voz com mais força porque representamos também uma união, o que leva mais pessoas a ouvir-nos e a dialogar.
O vosso foco no entanto é a acção nesta área concreta que é o concelho de Almada?
Sim. Até por sermos uma associação recente, como pouco mais de ano e meio de existência, centramos a nossa actividade no que nos está mais perto e conhecemos melhor. Estamos, sem nos limitarmos, onde podemos ver e perceber melhor as necessidades destas comunidades ciganas. E é nesse sentido que temos trabalhado.
A intervenção da Susana na reunião da Câmara foi no sentido de melhorar a educação…
Exacto, porque a educação é a chave de tudo. É a chave para uma pessoa poder alcançar um trabalho melhor, uma habitação melhor e ter uma vida digna. Enquanto associação acreditamos ser a educação a chave de todas as coisas, e sabemos que enquanto comunidade cigana a educação não chega de forma igual. Nós sabemos que o método de ensino deve ser igual para toda a gente, mas temos também de entender, enquanto sociedade, que nem todos começam do zero. Alguns começam no menos um, e é para esses que nós temos de olhar primeiro, fazer com que esses cheguem ao mesmo patamar e, como todos os outros, possam acompanhar a matéria da mesma maneira. Foi por isso que me dirigi à Câmara, para contratar mediadores que acompanhem as crianças e colmatar essas diferenças.
A educação também é uma forma de massificação. Não receia que esse investimento na educação faça perder pelo menos algumas características próprias da comunidade?
A educação não é cultura. A educação é uma necessidade, enquanto a cultura vem de casa. Quando falo de educação falo de educação a nível literário e científico, porque ser cigano nasce connosco. Os meus filhos sabem que devem respeitar os mais velhos e reconhecem a importância dos mais velhos na nossa comunidade. Ser cigano não é um bicho-de-sete-cabeças. Não é estar sujeito a uma lei severa e imutável. Não se trata disso. É como ser português. Ser português, como nós também somos, vem com uma cultura.
Mas existem leis ciganas, como às vezes se houve dizer?
Fala-se por exemplo de leis ciganas, ou dos homens ciganos de leis – não sei se já ouviram essa expressão? –, coisa que não existe. Existem, sim, homens e mulheres, mais velhos, que tiveram uma vida sempre exemplar, que são pessoas íntegras e que quando acontece uma confusão entre uma comunidade e outra, ou mesmo dentro da família, são chamadas essas pessoas, que ouvem as diferentes versões dos acontecimentos que naquele caso concreto estão em causa, para tomarem uma decisão que, no fundo, é uma mediação entre as partes. Uma mediação que, no entanto, e isto é importante, está sempre sujeita à lei portuguesa.
Vamos falar um pouco sobre as acções que a associação tem levado a cabo…
O nosso primeiro evento, o ano passado, em Outubro, chamou-se Portugueses Ciganos, que decorreu na Praça S. João Baptista, em Almada, em parceria com o município. A ideia de fazer este evento ao ar livre foi o de chegar a todas as pessoas. O que deu resultado, pois sendo um local muito movimentado, muitas pessoas que à partida não tinham interesse no assunto, quanto mais não fosse pela curiosidade, por exemplo, de ouvir a nossa música e a nossa dança, puderam igualmente conhecer a história e a cultura ciganas, a gastronomia também, e isso permitiu-nos mostrar a diversidade que existe entre nós. Um exemplo, por ventura desconhecido da maioria, é a existência de uma música evangélica cigana. Não é só flamenco. Muito importantes, embora com uma dimensão mais pequena e mais dirigida, são também as acções educativas nas escolas.
Mas mais recentemente, já em tempo de pandemia, a Costume Colossal teve outra acção relevante que foi a distribuição de bens alimentares…
Sim. Em colaboração com a Fundação Calouste Gulbenkian, que deu apoio financeiro, fizemos pacotes com alguns produtos básicos, e também álcool em gel – que agora é um bem de primeira necessidade –, que foram distribuídos pelas comunidades ciganas. Mas se pessoas não ciganas nos tivessem chegado com pedidos seriam também, dentro das possibilidades, receptoras desse auxílio.
Mudando de assunto, para o aspecto mais geral que é do da discriminação, a Susana acha que a maior parte dos portugueses são racistas?
Acho que sim.
Pode dar-nos exemplos concretos?
Claro. Um exemplo é que quando vamos a um centro comercial, ou mesmo a uma loja de rua, se for sozinha posso passar despercebida, mas se for com as minhas irmãs e com a minha mãe somos logo vistas como um grupo de ciganas. E o segurança deixa de assegurar a segurança do espaço e passa a fazer-nos segurança a nós, passa a andar atrás de nós, a controlar os nossos movimentos, porque o pensamento generalizado é que os ciganos andam aí para fazer mal. Alugar uma casa, para dar outro exemplo, assim que sabem que somos ciganos, torna-se quase sempre um problema, que, por vezes, nem é criado pelos proprietários mas sim pelos inquilinos, que não querem ter vizinhos ciganos.
Achas que há maneira de ultrapassar isso?
Eu acho que através do diálogo, não através da guetização das comunidades ciganas. Quando vivemos todos juntos, ciganos e não ciganos, as pessoas dão-se a conhecer, aprendem umas com as outras a ser mais tolerantes. Com a guetização apenas se acentua a discriminação.
Ainda existem comunidades nómadas de ciganos ou é uma coisa, digamos, em extinção?
Ainda existem, sim, em Portugal principalmente no Algarve. Acontece que essas comunidades, às vezes, apenas uma família, são muitas vezes impedidas de pernoitar ou instalar-se num terreno durante alguns dias. E isso acontece por puro preconceito. Aliás, basta ouvir o André Ventura, que faz constantemente acusações infundadas contra a comunidade cigana, o que acaba por ampliar o mal-estar contra os ciganos.
Em termos de acção no terreno o que é que a associação pretende fazer nos próximos tempos?
Temos um projecto, que está aprovado e foi financiado pelo Alto Comissariado para as Migrações, Pontes sem Margem, no qual visamos aprofundar o problema da mediação, sobretudo nesta época difícil que estamos a viver, no sentido de integrar as crianças que estão, perante a escola, em situação mais desfavorável, e colmatar algumas diferenças que nascem da discriminação.
Ricardo Salomão/ Rui Monteiro