Memórias do Transpraia
O comboio de praia da Costa da Caparica foi esta semana recordado pelo Jornal i, na reportagem que publicamos de seguida.
24 de Agosto de 1962. Inaugurava-se mais uma etapa na pequena linha de caminho de ferro da Costa da Caparica – Fonte da Telha. O projeto prometia ir mais distante – a Lagoa de Albufeira. Promessa que ficou por cumprir apesar do entusiasmo popular e do romantismo do repórter.
Matas exuberantes; soberbos miradoiros nas alturas; amplos e lavados horizontes; paisagens características que se estendem até ao horizonte; impressiva cenografia a desenrolar-se da foz do Tejo até às bandas de Espichel, eis os motivos que elevavam a Costa da Caparica a um dos pontos mais bonitos da costa atlântica lusitana.
Escrevia, com alma, um dos repórteres da época: “A proximidade de Lisboa, a bizarria dos aglomerados típicos, hoje com um toque de modernimo, pinceladas de cor, alegre e estuante de vida, a facilidade de comunicações e outros actractivos que o turismo proporciona ao veraneante e ao excurcionismo das vilegiaturas tornaram a Costa da Caparica numa das praias mais concorridas dos arredores da capital!”
A Caparica estava na moda!
O comboizinho da Caparica estava na moda!
Mas tinha ambições. Larguíssimas ambições para uma linha férrea tão estreitinha. Chegara à Fonte da Telha; estava prometido que viesse a terminar na Lagoa de Albufeira. Promessa vã.
Pelo caminho, a maquinazinha que parecia uma miniatura dos comboios elétricos da Marklin, viajava por entre poemas. Os prédios ainda não tinham dado à Caparica aquele ar de cidade suburbana à beira mar plantada. O jornalista estava arrebatado pela beleza do pedaço: “De ano para ano surgem novos melhoramentos e progressos que muito valorizam essa zona de características especiais, já com ar de cosmopolitismo pela presença constante de turistas estrangeiros, apreciadores da beleza daquela privilegiada zona, valorizada ainda pelos lugares vizinhos propícios ao isolamento repousante e devaneador entre espessuras verdejantes ao longo das areias que são uma variedade inédita da praia imensa”.
O poema continua. Tanto pode ser um poema como uma carta de amor. Mas a reportagem intitulada Diário da Outra Banda, publicada no Diário de Lisboa, mostra-nos uma Costa da Caparica bucólica, ainda sem o tormento das filas intermináveis de automóveis e o pavor de horas a fio encerrados nas carroçarias que fervem ao sol, cozendo-nos aos poucos enquanto o suor escorre pelos estofos. A Transpraia era o transporte suficiente para quem queria percorrer os quilómetros que levavam, agora, até à Fonte da Telha, com promessas de prolongamento que nunca vieram a cumprir-se.
Pasmado com tanta beleza, o plumitivo prosseguia o seu poema: “Um desses lugares imponentes, entre dunas e arribas, com o vermelho das falésias matizado com o verde da vegetação que quebra a monotonia das solidões adustas à beira-mar, é a Fonte da Telha – um punhado de casas de pescadores e a mancha colorida e risonha de umas quantas vivendas de veraneio o amplo e dourado areal. Até aqui o acesso à praia é sedutor e pitoresco, a não ser pelo areal fora, e antes das comunicações rodoviárias, fazia-se pela estrada até à Charneca da Caparica e, daí para diante, por uma via militar que atravessando o Pinhal do Rei, leva ao Sítio da Raposa, no alto das arribas sobre o lugar silencioso e convidativo. À sombra dessa espessura verdejante, enxameiam campistas, na sua maior parte estrangeiros que percorrem os roteiros nas suas risonhas e airosas roulotes”. Ah! Memórias de um passado que já não há…
Afonso de Melo