O Lago do Marajá
Udaipur ficou famosa no filme Octupussy da série 007, especialmente pelas filmagens no palácio do Marajá, construído numa ilha no meio do Lago Pichola (não fui eu que inventei o nome) lago, que se transformou num hotel de 5 (ou mais estrelas).
Como se pode ver pela imagem, é uma espécie de visão que parece flutuar nas águas pacíficas do lago.
O responsável por esta pequena maravilha, Maharana Jagat Singh II, o 62º Marajá da Casa de Mewar, construíu-a entre 1743 e 1746 com o propósito de constituir o seu palácio de verão. Claro, construiu é uma maneira de dizer.
O próprio Lago Pichola é também artificial e foi construído em 1362, rezando a lenda que o responsável foi um cigano (banjara), Teve como base a preservação de água potável e como método o aproveitamento de vários ribeiros da região.
O nome, Lago Pichola, deve-se a uma povoação nas suas margens: Picholi. E não aquilo em que estão a pensar, seus manganões…
Udaipur conta ainda com mais três lagos o que faz merecer o epíteto de Veneza do oriente. Digamos que não é um epíteto inovador, no oriente há várias venezas, até em Portugal teria de disputar com Aveiro.
Há um enxame de barcos, barquinhos e barcões carregados de turistas, que cruzam as águas do lago, colorindo a paisagem com as cores vivas dos seus toldos.
Os embarcadouros, normalmente junto às escadarias dos Ghat, são também locais muito animados pelas gentes que lá trabalham, os turistas, claro, e toda a fauna de comerciantes que estes locais atraem, que tentam ganhar as refeições da sua família a troco de uma bugiganga autêntica – feita na China – ou mesmo uma unha de Buda, ou Shiva, ou o que mais convier.
Houve um destes comerciantes que nos tentou convencer que tinha sido ali que Rama se sentou para cortar as unhas. Lá está.
Escusado será dizer que no tempo de Rama não havia lago e muito menos ghat onde se sentar. Mas quem vai criar confusões por causa destes detalhes?
Estávamos alojados no Lake Pichola Hotel, um estabelecimento simpático, que como todos na Índia, além do alojamento tinha mais umas série de empreendimentos, desde o simples aluguer de bicicletas até cursos de culinária indiana. Pequenos almoços é que não tinha.
Se pensam que isto é esquisito é porque nunca foram à Índia.
Para tomar o pequeno almoço não faltavam soluções em redor. Curiosamente, a maior parte delas, cafés ou restaurantes, era “Terrace” deste ou daquele, normalmente situados num 3º ou 4º andar.
Pode-se dizer que eram refeições com exercício incluído, para não ser necessária a dieta.
Acontece que, já para o fim do repasto, somos surpreendidos por um som mavioso, semelhante a vários violinos (alguns deles dissonantes) tocados ao mesmo tempo.
Curiosos, antes mesmo do expresso, descemos em busca do som que se espalhava pelas ruas, o que, nas ruas buliçosas da Índia, não é tarefa tão fácil como parece.
Após várias tentativas, becos que não davam acesso a nada, ruas que seguiam para mais longe da origem do som, lá fomos dar a um ghat em cujo patamar estava um músico e o seu filho que aprendia a dominar o estranho instrumento de cordas e arco: o Sarangi.
O som deste instrumento é sinónimo de Índia: belo e lancinante, doce e acre. Mas pensando bem, há tantos instrumentos que são sinónimos de Índia, como a cítara, claro, as tablas e até a flauta. Para não falar na voz, claro.
A música ia vogando pelas águas do lago, ecoando nas paredes dos edifícios, imitando as reentrâncias dos havelis, misturando-se com os odores épicos de todas as ruas.
Com a alma cheia deste momento, pequena maravilha do acaso, depois de recusar as ofertas do músico que já nos queria vender o seu sarangi, saímos, antes que nos propusesse a compra do filho.
Deambular pelas ruas e vielas de Udaipur é todo um mistério. A caminho do famoso templo Jagdish, fomos deambulando ao sabor do que atraía a nossa atenção.
Por alguma razão, Udaipur é um centro de objetos feitos de pele – de tudo menos de vaca, claro – e podemos encontrar desde vestuário, malas e cadernos e caderninhos ou só as capas, para adornar os que já temos.
Outro dos constantes comércios são as livrarias. Há por todo o lado e não só em Udaipur. Os indianos contam com uma cultura antiquíssima e imensamente rica, mas a verdade é que as pessoas, normalmente têm uma cultura geral muito vasta e detalhada. Quando dizemos que somos portugueses não é só o Cristiano Ronaldo que vem à conversa. Sabem o nome do presidente, da efeméride do 25 de Abril e por aí fora.
A minha curiosidade levava-me a dar uma vista de olhos nas lombadas dos livros em inglês e fui-me apercebendo da presença constante do famigerado “Mein Kampf” em todas elas. Não falhava.
Numa, em que o dono arrumava os expositores já na rua, não me pude conter e arremessei-lhe: não tem vergonha de vender isto aqui? Ele olhou-me surpreendido e sem responder. “Sabe o que este livro é”? Perguntei. Sabia perfeitamente.
Ainda argumentei que era uma bomba que a qualquer momento lhe podia explodir em casa, mas ele não pareceu demasiado preocupado. “Tenho que ganhar a vida, uma família para alimentar…” Depois confidenciou: Os alemães não resistem, vendo imenso”.
E pronto. Contra isto, batatas. Ou caril, vamos.
O templo, como todos na Índia estava cheio. Os templos na Índia estão sempre, sempre cheios, ou de crentes ou de turistas, ou de ambos.
Uma das características que mais me impressionam não é a profusão de altares, divindades, nem mesmo as descrições Kama-Sutrescas em mármore ou na pedra mais próxima do local. Não. O que mais abala o meu coração é o toque de sino que devemos fazer quando entramos.
É sempre necessário avisar as divindades da nossa presença.
Na Índia não se sabe bem quantos deuses existem e são adorados. Nem as suas castas, que se subdividem infinitamente pela ordem dos misteres.
Enfim, cada um se organiza como muito bem entender e, no seu conjunto, bem se pode dizer que… não têm organização nenhuma.
Lá fomos em direção a um palácio e depois a mais um templo já um pouco fora da cidade, mas completamente acessível a pé, e que ao seu redor tinha uma diversificada oferta gastronómica.
No caminho, subitamente, damos conta que o infernal trânsito que caracteriza as artérias indianas estava parado mas – oh surpresa das surpresas – nenhuma buzina se ouvia.
Quando olhamos para trás, vimos um enorme elefante, como qualquer elefante se orgulha de ser, avançando, bonacheirão, estrada acima, ladeando com cuidado os automóveis e outros, muitos e variados veículos, que aguardavam silenciosa e pacientemente que o paquiderme fosse à sua vida.
Ninguém ousava assustar o animal. Prova de inteligência dos condutores. Nem os turistas americanos reclamavam.
Pudera!