O Mistério da Criação

Noto que os meus pensamentos estão, cada vez mais, inquie­tos. Sentem-se aprisionados neste Mundo que os opri­me e que­rem voar, livres como o vento e as nuvens, para muito longe daqui. Pretendem levar-me pelos espa­ços infindos da imaginação até aos limites da Criação e aos primórdios da existência, lá onde os deuses da Teogo­nia moldaram o mundo e lhe deram vida.

Quero segui-los, mas sei que para iniciar uma tal viagem tenho, antes de mais, de fazer um difícil exercício de abstracção e que uma travessia como esta requer, igual­mente, um desprendi­mento total, que exige a completa elevação do espírito e uma imagi­nação pura, diria mesmo, imaculada, isenta de qualquer influên­cia cultural estranha. É evidente que tais capacidades não estão ao meu alcance e apenas são possíveis nas mentes divinas. Entre os humanos só os xamãs as possuem quan­do atingem o estágio alterado de consciência, situado na região limítrofe entre os sentidos e a alma, e somente em transe conseguem libertar-se da matéria e alcançar a espi­ri­tua­lidade. Assim mesmo, apesar de consciente das minhas limitações, pretendo conhecer as origens do uni­verso e divago por caminhos incertos na procura obsti­nada dessa revelação.

Devido à magnitude e complexidade da tarefa, e de acordo com a lógica das coisas decido começar, natural­mente, pelo prin­cípio. Hesito um instante porque é neste exacto momento que me surge a primeira grande dúvida: onde se situará esse princípio? Admirado com a minha igno­rância, do que considero óbvio, ali­nhavo algumas defi­nições vagas, inconsistentes e banais que me escapam fur­tivas, como a areia fina por entre os dedos. Logo fico decepcionado com este início tão pouco promis­sor, mas esforço-me por ultrapassar a minha frus­tração e acabo por concluir que só posso explicar a Criação do Mundo com duas teorias possí­veis: uma, que defende o surgi­mento de todas as coisas a partir do Vazio; outra, que baseia as Origens num desorganizado mun­do pré-existente – o Caos.

Começo por analisar a teoria da Criação a partir do Vazio, conhecida pela expressão latina creatio ex nihilo, em que o Nada, obscuro e ilimitado, não é espaço, nem maté­ria, nem tempo, é, se me posso explicar assim, o Nada metafísico, o ab­sur­do imponderável, a abstracção absoluta. O significado de Vazio, já de si de difícil com­preensão, fica ainda mais nebuloso quando me convenço de que só é possível surgir algo desse Va­zio se nele existir aquilo a que se chamou a Essência da Criação. Cada vez mais pertur­bado, questiono-me: mas afinal o que é a Essên­cia da Criação, e como, e de quê, ela é cons­tituída? Na ausência de outros saberes, recorro às defini­ções já consagra­das e à etimologia da palavra e depreen­do que a essência é o con­junto dos elementos constituti­vos de um ser, sem os quais este não poderia existir. Então depreen­do que a Essência nada mais é do que a centelha original da vida. Satisfaço-me com esta dedução e concordo que já avancei alguma coisa na tentativa de compreender a Criação, porque apesar de ser algo ainda dema­siado sim­plista, já consigo imaginar uma chama primordial a acender-se na escuridão do Nada, plasmando os primeiros e incipientes átomos da Vida.

Porém, a minha euforia é efémera. Alegro-me por ter atingido o nascimento da luz que eliminou as últimas trevas cósmi­cas, mas logo me surge uma nova dúvida, intempestiva e provoca­dora: não disse eu, antes, que no princípio apenas existia o Va­zio, ou seja, o Nada, a que chamei metafí­sico? Então, como pos­so afirmar agora que a Essência da Criação existe no Nada, se ela própria é formada, como vimos, pelo conjunto dos elementos cons­titutivos de um ser? É, com efeito, uma contradição pertur­badora que derruba toda a arquitectura do raciocínio seguido até aqui e que me obriga a fazer novas considera­ções e a percorrer outros caminhos.

Assim, para avançar na linha do pensamento inicial e, talvez para poder responder a esta indagação resolvo, tem­po­raria­mente, deixar de pensar no Vazio, e parto da premissa que se baseia na segunda teoria da Criação: no princípio de tudo, era o caos.

Sei que a transformação do Caos em Cosmos é um acto pri­mordial e que a cosmisação do Mundo é a consa­gração ou orga­nização do espaço, a que chamamos o nosso Mun­do. Também concordo que o Caos é um estado de desor­gani­zação originado do tempo, apesar de saber que, subja­cente à sua desorganização, existe no âmago das coisas uma certa organização primitiva, mas aceito esta teoria por me parecer mais lógica e para me servir como base de tra­balho na tentativa de compreender o mistério da Cria­ção. Posso, portanto, considerar que é a partir do Caos Pri­mor­dial que irão surgir o Céu, a Terra e o Amor.

Mas como ocorrerá isso?

Depois de reflectir e sem saber que forças actuaram nesse sen­tido, chego à conclusão, possível, de que sobre o Caos foi ins­ti­lado o Sopro Essencial, ou seja, a placenta geradora da Ordem, substrato fundamental para o nasci­mento da Vida. Mas nada disto está comprovado e apenas faz parte das especulações meta­fí­sicas, das hipóteses inve­ri­fi­cáveis. Para aclarar este conceito, ainda nebuloso, sou levado a socorrer-me da Mitologia, pois pen­so ser possível encontrar aí a satisfação da minha curiosi­dade.

Os povos da Terra, desde os tempos primitivos e até aos nos­sos dias, procuraram explicar o mistério que encer­ra a origem do Mundo. Os aborígenes australianos, donos uma grande sabe­do­ria, chamam a esse momen­to o Tempo do Sonho e criaram mi­tos que justificam a forma­ção do Uni­verso e como lhe foi insu­flada a vida. Também eu, imbuí­do do mesmo espírito inqui­ridor, vou agora per­cor­rer os caminhos mitológicos para tentar desco­bri-lo.

Inicio com a análise de alguns mitos da Criação que prevale­cem inalteráveis em determinadas sociedades e verifico que se para uns, a Criação emerge da metamor­fose espontânea de for­mas embrionárias no interior da terra ou da água, para outros, a terra, ou seja, a massa continental do Mundo, foi retirada das águas primordiais pelos deuses, em sucessivos mergulhos. Veri­fico que estas duas formas de explicar a Criação, adaptam-se bem à teoria do Caos, porque pressupõem a existência prévia, tanto da terra quanto da água, ainda que num estado desor­gani­zado, e é a partir delas que se inicia o fabuloso cami­nho do nas­cimento de todo o resto. No entanto, nenhum deles tenta explicar a origem do Mundo, antes, aceitam-no já em profunda transfor­mação. 

Por outro lado, e ainda de acordo com outros mitos, a Cria­ção, é o resultado de divergências profundas e de vio­lentos con­frontos entre deuses que provocaram o apare­cimento da matéria quando, até aí, só existia espírito. A maior parte dos mitos, porém, explica as origens do Universo com o surgimento do Ovo Cósmico posto por uma divindade que o utiliza para simbolizar a perfeição do Cosmos, enquanto que no Génesis da Bíblia, a Origem provém de um deus que faz surgir o Mundo a partir do Nada. Embora estes mitos, tal como o do Caos, não men­cionem o Sopro Divino, consideram, no entanto, o Ovo como a Essência da Criação, e às divindades atri­buem-lhes a sua autoria. Segundo Aristófanes, o grande drama­turgo grego, no princípio surgiram o Caos e as Trevas e a noite pôs um Ovo na escuridão e dele saiu Eros. Este fertilizou o Caos, donde nasceram os oceanos, a terra e todos os deuses.

Esta análise, pela diversidade apresentada, não me elucidou sobre a Origem mas, em compensação, mostrou-me a preocupa­ção dos povos em explicá-la e revelou-me a unanimidade, em todos eles, da existência da participa­ção divina. Para adequar estes mitos à teoria da Origem a partir do Vazio, sou forçado a partir do princípio da inter­venção divina, ou seja, de forças existentes no espaço intemporal do espírito que se sobrepõem a tudo, inclu­sivamente, ao Vazio cósmico. Nesta divagação pelas veredas mitológicas também concluí que não estou no Centro do Mundo, como eu pensava, e que aqui não é o imago mundi, a fonte primordial do conhecimento. Se quero alcançar a Verdade preciso encontrá-la na origem cósmica, ou seja, no verdadeiro Umbigo Universal.

Na busca a que me propus, continuo a tentar atingir um esta­do alterado de consciência que me permita ver algo mais para além do que considero real. Sem perceber como, alcanço o meu limite de abstracção. Elevo o espí­rito a um nível quase xamanís­tico, tão alto que incons­cientemente me guindo ao reino das cos­mo­gonias, ao mundo dos mistérios insondáveis e atinjo o Nirvana.

Não sei onde estou, nem em que tempo vivo. Talvez me encon­tre num dos sete céus e este seja um dos estádios espirituais na caminhada para o Infinito e o Eterno, depois de passar para lá dos limites do Mundo.

Escondido nas trevas que ocultam outras trevas, esma­gado pelo grande silên­cio e oprimido pelo Vazio, sofro a angústia da soli­dão. A escuridão que me envolve é subita­mente des­vir­gi­nada pela explosão de luz e fogo que, pro­veniente de milhares de fais­cantes relâmpagos, provoca uma res­plan­decente Aurora gerada no terrível nascimento dos sóis.   

É-me então permitido assistir ao processo da Criação em que os deuses da Teogonia, transmudados em Essên­cia, num afã frenético e ébrios da alegria criadora, juntam no mesmo espaço-tempo místicas nuvens, peda­ços de átomos, restos de mistérios, caóticas partículas, o fogo pri­mordial, poeiras cósmicas e as sobras de sonhos antigos. Depois, sinto o Sopro Essencial, como se fosse um vento respirado do outro lado das trevas, preencher os celestes espaços intersticiais e insinuar-se sobre a matéria primi­tiva, criando a Vida sob a forma de uma simples gota de água. Estupefacto, vejo aquela gotícula transpa­rente, ino­cente e solitária na poeira das cosmogonias, des­lizar de um lado para o outro, fazendo surgir no encan­to do seu rasto, o céu, a terra e o ar, o sol e a lua, as estrelas e os planetas, a noite e o dia, os vales e as montanhas, as plantas e os animais, os lagos, os rios e os mares. Perma­neço estático e deslum­brado. A visão da Origem é abso­lu­tamente esmagadora pela sua grandiosidade.

Os deuses, como cometas alucinados, constroem o Mundo esvoaçando sobre as formas emergentes da Cria­ção e disparam dardos impregnados de Luz e Fogo num total arrebatamento de beleza poética. Só então reparo num deles que, até aí, não par­ticipara na orgia da Criação. Desloca-se, grave e solene, arras­tando pelo cosmos o seu infinito manto de cintilantes galáxias. Pela sua imponên­cia e esplendor deduzo que seja o Deus dos deuses de onde provém o Sopro Essencial e por quem todos os outros demonstram respeito.

Escondido nas sombras cós­micas, como um voyeurem ati­tude furtiva e voluptuosa, reparo que ele observa com atenção o trabalho já realizado e até lhe faz peque­nos reparos: acrescenta uma estrela aqui, uma montanha ali, um sopro de vida acolá, uma constela­ção ou um oceano lá mais à frente, mas apa­renta não estar ainda satisfeito. Parece que à excelência daquele deus magnífico falta algo para a obra atingir a perfeição que ambi­ciona. Como se tivesse sabido sempre da minha presença ali, estende para mim um dedo res­plan­decente cravejado de estrelas. O seu brilho é uma fonte de luz que me ilumina e expõe. Sinto-me envergonhado por ter sido apanhado em flagrante, como um intruso a assistir a um acto para o qual não foi convidado, e noto que o meu espírito ganha uma aura de luz que desenha no cos­mos a minha forma humana. Logo em seguida vejo junto a mim uma mulher vinda do nada, segurando na sua a minha mão e, quase de imediato, uma multitude de homens, mulheres e crian­ças preenchem com vida huma­na o Espaço que me circunda. Como por encanto, todos surgem à minha volta envol­tos na mes­ma luminosidade. Sei que este é o momen­to dramático da ori­gem da huma­nidade e que eu estou a participar dele. Sensações estra­nhas percorrem-me o espírito e penetram-me na alma e eu, aca­bado de nascer, compreendo o que é a paz e a harmonia. Sinto um fluido morno envolver-me o coração. O Amor, que Parméni­des chama de Eros e que con­sidera ser o maior deus do Olimpo, instala-se ternamente no meu peito e eu aprendo o que é a Felici­dade. Sorrio e enten­do a Justiça, o Bem e a Poesia das coisas e, então, sonho.

Quando acordo, sinto que a minha experiência trans­cen­den­tal foi fruto de um esforço quase sobre-humano e que passei por tremendas convulsões iniciáti­cas, inexpli­cáveis e esplêndidas. O meu espírito regressa, relutante, ao corpo que lhe serve de abri­go, o qual, desprovido de alma, nada mais é que um invólucro vazio, inerte e inútil. Olho em volta e não reconheço o meu Mundo, nem a humani­dade que nele habita. Sinto que não lhe pertenço mais, que renasci noutro lugar e que este não é o meu espaço, nem o meu tempo. Rejeito a realidade, pois, sei agora que ela não passa de uma sombra, de um vulto furtivo, de uma imita­ção tosca da Verdade, porque eu, ao transcender-me vi a luz para lá do tempo.

Nesta experiência compreendi que nos Primórdios tudo o que havia era o Nada. O conceito de Espaço só pode ser compreen­dido a partir da Criação pois não faz sentido falar-se de uma dimensão quando tudo o que existe é sim­plesmente Nada.

Também a concepção de Vazio passou a não ter signi­ficado, visto existir nele a essência da Criação. Percebi que o Nada era como um campo estéril que ao ser bafe­jado pelo Sopro Essencial se fertilizou e produziu a Vida, na forma que a conhecemos. Se identificarmos o Sopro Essencial com a vontade do Espírito, poderemos concluir que ambos são a Energia Primordial, aquilo a que vulgar­mente chama­mos Deus.

As vivências, por mim experimentadas, foram tão inten­sas que a minha procura inicial da Criação enredou-se no mundo brumoso do sonho e levou-me a duvidar das certe­zas então adqui­ridas, por serem fruto da minha cons­ciência alterada.

Afinal, sinto que a Criação não é mais do que uma uto­pia, algo que não se originou no Tempo e nem no Espaço, porque antes destes conceitos existirem, a própria Criação, já continha em si mesma o Criador.

Reinaldo Ribeiro

25-12-99

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