O País Atrás das Nuvens
O Yunnan é a província chinesa do Sudoeste. Faz fronteira com o Vietname e o Laos a sul, com o Tibete a Norte e com a Birmânia a oeste. O sul tropical desta província chinesa, a prefeitura autónoma de Xishuangbanna, é parte do chamado triângulo dourado da produção de droga, nomeadamente heroína e ópio. Dizem que os donos do tráfico têm exércitos capazes de desafiar os dos países envolvidos.
Os vietnamitas, os seus vizinhos do sul, dizem que o Yunnan é o “País Atrás das Nuvens”, o que, de resto é o significado de Yunnan. Já os do norte, os tibetanos, só dizem aos seus vizinhos chineses: “vão-se embora, deixem-nos em paz”.
O Yunnan é uma grande província, não pelas quase 49 milhões de almas, coisa pouca na China, mas sim por ser a pátria de um terço de todas as minorias chinesas que, ao contrário da propaganda oficial, não são nem respeitadas, nem bem tratadas.
Kunming, quando a visitei, nos finais do século passado – do milénio passado, na verdade – era uma cidade muito pacata, com os primeiros prédios altos a despontar no mar de edifícios baixos e de cariz tradicional, evidenciando a vida ainda organizada em comunas.
Como sempre, e em todos os países, o desenvolvimento constituía uma esperança para os residentes, mas uma ameaça já melancólica para os turistas.
A capital do Yunnan tem uma população muçulmana apreciável, a qual justificou a reconstrução da maior das suas mesquitas, após a violência destrutiva da Revolução Cultural. Nessa época, a mesquita foi transformada em fábrica. Passada a febre radical, pouco a pouco, a recuperação começou, não só na mesquita, mas em vários outros templos budistas. Mas nem todos.
Esta violência contra os monumentos do passado e especialmente religiosos, mas não só, fui encontrando em inúmeros locais e monumentos históricos, um pouco por toda a China, na maioria sem os benefícios da reconstrução. Era o tal corte com o passado, advogado por Mao, que procurava instaurar o “Grande Salto em Frente” sem o peso da tradição.
Os passeios pela cidade são relativamente tranquilos, com ruas amplas e arborizadas, sendo ainda visíveis os enormes jornais murais, além dos grandes cartazes a instar a população a tomar as devidas precauções contra as doenças venéreas, usando imagens arrepiantes.
No fundo é a mesmíssima tática que nós usamos nos maços de tabaco, mas umas décadas antes e com fotografias ainda mais arrepiantes.
A saúde tem sido um dos sectores que mais evoluiu após a revolução comunista chinesa. Logo no seu dealbar, de forma a poder advogar uma iniciativa nacional de saúde popular, mas não tendo o pessoal médico que a sustentasse, as autoridades chinesas inventaram “os médicos descalços” que, armados de um estojo de primeiros socorros e um manual, se instalavam nas comunas mais distantes, cabendo-lhes socorrer os doentes locais. Se pudessem.
A caminhada para encontrar o mais famoso templo em Kunming, na verdade composto por dois pagodes, o do oriente e o do ocidente, ganhava um outro desafio: encontrar cerveja fresca.
Esta foi a minha primeira cidade chinesa que não dava valor à refrigeração da cerveja. Nem os ingleses! Era vendida diretamente da grade. Cervejas de meio litro, mas morna. Ou mesmo quente.
Aqui e ali, lá se encontrava fresquinha, para meu deleite. O que havia por todo o lado era queijo de cabra frito. Ora, haver queijo na China já era um achado, mas frito era simplesmente extraordinário…
Na caminhada, entre cerveja mais ou menos ou nada fria, queijo e outras vitualhas apareciam sempre os batiques.
Esta técnica de tingir tecidos, construindo os padrões com cera derretida antes de os tingir era muito atraente, apesar de não ser original da China. Havia tudo em batique, de chapéus a camisas, passando por calças, vestidos, toalhas, estandartes, guardanapos, tudo. A cor mais popular era o azul, mas não a única.
Continuando os passeios pela cidade, era fundamental conhecer os pagodes da dinastia Tang (618 – 906) conhecidos como o Pagode do Oriente e o do Ocidente, sendo este bem mais interessante que o outro.
Na verdade, segundo a informação oficial, o Pagode do Oriente foi destruído por um terramoto. No entanto, as fontes não oficiais afirmavam que tinha sido destruído por revoltas muçulmanas e reconstruído no século XIX. O atrito entre a população muçulmana e as autoridades chinesas (Han) vêm de longe e ainda não terminaram.
Muito mais interessante é o Pagode do Ocidente, com um espaço ajardinado frequentado por muitos residentes, especialmente idosos, fazendo Tai Chi, jogando cartas ou mahjong, ou até a dançar o tango, atividade que granjeou uma popularidade imensa por toda a China. Viral, antes do termo ganhar a conotação social dos nossos dias.
A Floresta de Pedra
A maior atração de Kunming é a chamada “Floresta de Pedra”, que fica a cerca de 120 Km a sudoeste da cidade e é composta por uma “floresta” de pilares de calcário cinzento, formados pela erosão pela água da chuva e pelo vento.
No entanto, a descoberta de fósseis marinhos fundamentaram a hipótese de em determinada altura estar submersa.
Porém, segundo a lenda, foram os Imortais que a construíram, para, nada mais nada menos, acolher os enamorados e protegê-los de olhares indiscretos. Deve ser verdade, porque pude ver diversos casais em apaixonados piqueniques.
A Floresta de Pedra é tratada como um parque temático, com a construção de alguns passadiços, polvilhada por pavilhões chineses e com muitos, mas mesmo muitos visitantes.
Estas construções são bastante úteis para orientar os incautos – como eu – que se aventuram sozinhos e não se contentam em calcorrear os caminhos aconselhados, fartos das histórias mirabolantes propaladas pelos guias.
Acontece que esta Floresta de Pedra, com cerca de 80 hectares é apenas uma parte do fenómeno. Eu sabia que a cerca de 10 Km a norte existia uma outra, muito maior, com cerca de 300 hectares, mas que não estava aberta ao público.
É preciso explicar que o conceito de público, na China, é um pouco especial. Normalmente, “público” significa estrangeiro, especialmente num local, como este, com enorme incidência do turismo interno, normalmente organizado por agências estatais.
Enfim, tive de me contentar com o que tinha e ouvir, aqui e ali, as histórias do “cogumelo eterno” ou do “rinoceronte a contemplar a lua”, convidando a olhar com mais atenção para os pilares rochosos em questão. Mesmo quando o rinoceronte não era tão descortinável.
– Uma parte já caiu! Foi a desculpa oficial naquela situação.
O Templo de Bambu
Também fora da cidade mas bem mais perto, a cerca de 12 Km, fica o famoso Templo de Bambu. No entanto, apesar de ser 10 vezes mais perto, foi 10 vezes mais difícil de lá chegar.
A aventura começou bem, com um pequeno autocarro que me deixou no meio de uma estrada e sem qualquer indicação de como chegar ao templo. Felizmente uma motoreta tipo riquexó apareceu e deu uma ajuda. Mas também não me deixou perto do templo. Foi à boleia de um enorme camião que lá cheguei.
Estas coisas fazem parte de qualquer viagem que se preze…
O templo é famoso pela sua estatuária em cerâmica, nada como os guerreiros de Xian, monocolores, mas aqui com feições detalhadas e vestuário esmaltado e pintado com cores extremamente realistas e atraentes, ou alguns com traços mais caricaturais e outros completamente surreais, como os monges surfistas.
Apesar do templo ser da dinastia Tang, ardeu completamente e foi reconstruído no século XV. Porém, a sua fama adveio da decisão do seu abade, em 1883, ter contratado um mestre ceramista-escultor da província vizinha de Sichuan, Li Guangxiu de seu nome, para construir nada menos que 500 “arhats”, ou seres iluminados, dispostos em enormes pavilhões, com vitrines de dois ou três andares.
As esculturas, tão reais umas como surreais outras, parecem fotografias instantâneas que registam um momento fugaz, um gesto, uma expressão.
Infelizmente, estas obras de arte não foram do agrado de todos, especialmente os caricaturados, digo eu. Seja como for, a crítica motivou o desaparecimento do mestre escultor. De um momento para o outro, nunca mais foi visto e não há mais registo dele na história. A não ser estas suas obras, que eternizam o seu autor, como se vê.
Uma visita intensa, na realidade. Intensa e inesquecível, perdida no meio das colinas fortemente arborizadas e quase inacessíveis.
Quanto aos bambus que dão nome ao templo, só foram plantados muito recentemente, acrescentando mais um mistério a este templo, ficando suspensa em especulação a razão pela qual obteve este seu nome.
Dali
Trata-se de uma pequena cidade que nada tem a ver com o famoso pintor de bigodes curvilíneos, e ainda menos com uma outra cidade homónima na Califórnia. Esta Dali situa-se na margem ocidental do lago Erhai, um longo lago bordeado pelas montanhas Cangshan, mas sendo shan o chinês para montanha, seriam as montanhas Cang.
Isto dito por um português, país cujo nome, Portugal, significa “porto” em duas línguas diferentes. Adiante.
Curiosamente Dali, capital da minoria Bai que, em tempos idos, dominou todo o Yunnan, atrai muitos estrangeiros. Mesmo muitos.
Dizem as más línguas que isso se deve à relativamente liberal posição em relação à produção, venda e consumo de canábis, tradicional entre os Bai.
Por outro lado, esta afluência de ocidentais, os “guailôs”, fantasmas do ocidente, determinou não só o florescimento de hotéis como de restaurantes que propiciavam excelentes pequenos-almoços, com panquecas e tudo. E isso eram boas notícias.
A forma como os Han – a etnia dominante da China – tratava os Bai em Dali era nada menos que revoltante. Chegavam ao extremo de adornarem as rececionistas com toucados de plástico para se assemelharem aos Bai, mas eram claramente Han.
O lago Erhai tinha infinitas viagens turísticas a cruzarem as suas águas e oferecer aos turistas a possibilidade de verem a cidade emoldurada pelas montanhas, assim como todo o movimento do lago.
Uma das cenas que se podia observar era a pesca com corvos-marinhos. O pescador atava um laço no pescoço da ave que desta forma a impedia de engolir o peixe que apanhassem. Interessante de se ver, apesar da evidente crueldade.
Um outro aspeto que muito me impressionou – e era mesmo esse o objetivo – aconteceu ao jantar, numa pequena esplanada. Começou por um barulho ritmado mas difícil de perceber de que se tratava.
Eram soldados. Uma patrulha de cerca de trinta homens que trotava rápido pela cidade. Quase correndo. Perguntei à patroa sobre aquilo e ela confirmou: “fazem isso todos os dias. É preciso ter cuidado”, explicou encolhendo os ombros com resignação. Também não poderia dizer muito mais.
A cidade antiga de Dali é muito atraente, suscitando continuamente vagas numerosas de visitantes.
Logo na entrada sul, imponente, o “portão” mais parece um cenário de filme. De resto, uma sensação que perdura ao calcorrear as ruas empedradas da cidade antiga, cheia de cafés e lojas. À noite, com o portão iluminado e as inúmeras lanternas tradicionais por todo o lado, apesar do belo efeito visual, reforça a sensação de cenário construído, com objetivos turísticos, a que não é alheio o facto de ser visível a sobreposição dos Han sobre os Bai, verdadeiros construtores da região.
A cidade antiga foi construída durante a dinastia Ming (1368-1644), a qual finalmente fez terminar a vigência Mongol na China. Foi esta antiga capital do Reino de Nanzhao e do Reino de Dal que, como atrás referi, chegou a dominar todo o Yunnan.
Lijiang
Continuando a viagem, o próximo ponto de atração foi Lijiang, também com uma cidade antiga, com a sua posição geográfica já mesmo na fronteira com o Tibete e, sobretudo, com uma cultura matriarcal que, como pude observar, era ainda prevalecente.
Fiquei alojado na cidade nova, em frente a um consultório médico que haveria de constituir uma bênção divina, tal como explicarei mais tarde.
A cidade velha ficava muito perto, sendo fácil chegar lá a pé. Pelo caminho pude constatar que em todas as lojas, quem estava ao balcão eram mulheres.
Claro que havia homens pelas ruas, especialmente ligados a transportes, como táxis, carrinhas de distribuição, etc. Mas aparentemente, quem dominava os negócios eram mesmo as mulheres.
Desta vez, as aparências não iludiram.
Na cultura Naxi, as mulheres têm a primazia e os homens têm como principal atividade a arte.
Até a nível sexual as mulheres têm domínio sobre as suas preferências e, mesmo casadas, têm a possibilidade, num determinado dia, de ter liberdade para se encontrarem com outros homens do seu interesse.
Fora da cidade, as quintas Naxi têm mesmo uma casa separada precisamente para esses encontros.
A Cidade Antiga de Lijiang era um emaranhado de casas tradicionais, atravessada por estreitas ruas empedradas e um ribeiro com alguns canais. Casas de madeira, algumas alteadas em relação à rua, pavimentada com placas de pedra. Essa característica fazia prever que o regato que corria, sonoro, por entre o casario, poderia muito bem, em determinadas circunstâncias, aumentar o seu volume e atingir o edificado.
Por outro lado, tratando-se, como vimos, de uma cidade antiga, não haveria de ter inundações tão fortes que fizessem perigar a sua existência. Como verão mais à frente, o perigo viria de outro lado.
Percorri as ruas e vielas, muitas casas com as famosas esculturas Naxi, de uma religião Dongba, descendente da Bon tibetana. Não era em vão que estávamos na fronteira do Tibete.
Passeei pelas ruas, ao sabor dos meus passos, até me deparar com o “Naxi Concert Hall”, tal qual apresentado, em grande tabuleta na sua porta tradicional. Sabia o que estava a ver: era uma das grandes tradições locais.
Na verdade, esta orquestra orgulhava-se de manter, não só a música tradicional como os seus instrumentos seculares, como o seu maestro e líder Xuan Ke, que mais tarde me apresentou, com detalhe, a “Orquestra Dayan Naxi”.
Porém, os concertos só tinham lugar de noite – e não em todas – não se podendo comprar bilhetes antecipadamente, nem reservá-los. “É chegar mais cedo!” Avisou a senhora que varria a portada. E assim fiz.
Pouco depois das 19:00 horas lá estava eu e mais uns quantos, não poucos, interessados.
O espaço, extremamente tradicional, era iluminado por lanternas e não se lobrigavam lâmpadas elétricas. O apresentador explicou que toda a filosofia da orquestra assentava no princípio de preservar a memória, a tradição, a identidade.
Segundo pude perceber, a Revolução Cultural tinha atacado forte ali. Vários foram presos e muitos dos instrumentos estiveram escondidos em parte necessariamente incerta durante algum tempo, até a sanha dos revolucionários, e depois do Bando dos Quatro, se atenuar e desaparecer.
O próprio Xuan Ke, esteve preso vários anos, vítima do chamado “Desabrochar de Cem Flores (1956-57), o estratagema de Mao Zedong que proclamou a necessidade de recentrar a Revolução, encontrando outras formas de pensar e proclamando “que Cem Flores Desabrochem!” Foram todos presos.
Quanto ao concerto é simplesmente impossível de descrever, porém, se procurarem no Youtube irão encontrar alguns testemunhos de concertos (ou até concertos inteiros).
A sonoridade da orquestra aproxima-se várias vezes da ópera chinesa, provavelmente por ter uma composição instrumental semelhante. Sinceramente fiquei surpreendido por ver jovens mulheres integrando a orquestra. Não sei se por serem jovens representavam uma mudança na política de aquisições ou se a tradição tinha cedido à modernidade, mas lá estavam eles (e elas) tocando orgulhosamente os seus instrumentos que tiveram de esconder em segredo para resistir à Revolução Cultural.
A próxima visita era um mosteiro próximo, o de Puji.
Confesso que não estava preparado para o choque. À entrada, dois guardas do Exército Vermelho, com metralhadoras a tiracolo, protegendo o portão de forma meio displicente. Não se lobrigavam quaisquer visitantes.
Indaguei se podia visitar o mosteiro e se tinha monges para nos guiarem. Aí os soldados apontaram uma minúscula barraca encostada aos muros, “os monges estão ali”, balbuciaram, “eles podem mostrar”. Os monges, felicíssimos, perguntaram aos soldados se podiam vestir os seus hábitos. Com um gesto enfadado aquiesceram.
Entrei constrangido, examinando os cilindros de oração e fazendo-os girar. Era para isso que ali estavam, para aqueles que, como eu, não sabiam recitar os mantras, ao girar esses cilindros, eles faziam isso por mim. Dentro dos cilindros, extensas folhas de papel enrolado, continham várias preces e mantras. Era também esse o papel das bandeiras de oração, o vento, enquanto as fazia drapejar, transportava os seus mantras por todo o lado.
Além de me mostrar o pequeno mosteiro, os dois monges deram-me uma excelente dica: a necessidade de visitar o pequeno Potala, um mosteiro relativamente perto que se assemelhava ao Potala.
O tal mini Potala era o Mosteiro Gedan Songzanlin, numa cidade que se chamava Shangri-la. Como se podia resistir a isto?
Mantive as malas em Lijiang e parti para dois ou três dias em Shangri-la. A viagem não era pequena, mais de três horas, mas partindo bem cedo, num carro local, contando com a soneira, não devia ser difícil.
Acontece que esta cidade já fica perto dos três mil metros de altitude. Descobri esses efeitos – a primeira vez na minha vida – ao atravessar a rua. O cálculo automático que fazemos entre a velocidade do carro que vemos ao longe e o tempo que julgamos necessitar para atravessar a rua… bem, o cálculo sai muito furado!
As nossas pernas não respondem da mesma forma, mas o carro sim, continua a manter a velocidade que tem. Olhava o carro a aproximar-se mais do que devia e o cérebro não computava direito. Comecei a correr, e mesmo assim foi à justa.
Xiça!
Enfim, Shangri-la era adorável, também com um ribeiro e o mosteiro, realmente muito semelhante ao Potala, dominava a paisagem. Fui até ao portão e perguntei se podia visitá-lo. O monge pediu-me para esperar e regressou depois com um convite do abade Lama que dirigia o Mosteiro. Uau!
À hora marcada, 16:00 horas, lá cheguei, entusiasmadíssimo e fui guiado pelo monge pelos corredores e salas, com forte cheiro a humidade e incenso, aqui e ali olhado com extrema curiosidade por um ou outro monge, todos com o seu vestuário laranja e todos sem esconder a sua surpresa.
Cheguei finalmente à sala onde me esperava o Lama, sentado na tradicional posição de lótus num estrado um metro mais elevado. Era idoso, mas muito sorridente e simpático.
Na mesa em frente ao assento que me era destinado estava uma taça para o chá e uma outra com uma pasta. Explicou-me o monge de serviço que a taça era mesmo para chá – que estava a chegar – e a pasta era manteiga de iaque.
Confesso que mexeu comigo. Finalmente iria provar a famosa manteiga de iaque, que tinha lido em livros de Lobsang Rampa, o embusteiro, que mais do que provavelmente nunca a tinha provado.
Chegou o chá, perguntei como se comia a manteiga – não era para barrar o pão, como aqui – era à mãozada, pequena, claro. Fiquei a saber de onde vinha o nome do iaque, porque era IAC mesmo! Horrível!
Tive uma conversa, própria do chá, expliquei de onde vinha, expliquei o que era Portugal, falei-lhe do episódio dos monges de Puji, impedidos de ficarem no seu templo por dois soldados.
Que sim, mas não desenvolveu. O Lama parecia pairar, não só na sala, mas também na realidade inteira. Não partilhou o chá nem a manteiga – homem sábio – e explicou-me que os monges tinham hábitos alimentares muito diferentes.
“Podemos até não comer. O meu antecessor esteve preso vários dias sem comer. Alimentava-se em espírito da essência das coisas, as colheitas ressentem-se disso… Foi libertado pouco depois. Não é justo fazermos essas coisas, não é justo para os outros…”
Voltei à cidade com o espírito cheio, tinha falado com um lama, visitado o Potala, mesmo sendo miniatura e tinha provado a manteiga de iaque. Enfim, nem todas as conquistas são doces…
De regresso a Shangri-la e com o transporte combinado só para um dia depois, restava um diazinho inteiro sem programa.
No hotel onde ficava encontrei uma senhora alemã, alta e volumosa, que quando percebeu que era português e tinha uma câmara fotográfica, me pediu ajuda: “o dono do hotel é um traficante de ursos, importa-se de tirar umas fotos?”
A princípio não percebi, mas ela pediu-me para a acompanhar à cave, com cuidado para não sermos descobertos, e lá estava a jaula com um urso. Tirei todas as fotos que a senhora pediu. Felizmente tinha acabado o rolo no Potala e tinha um rolo novo na câmara, que enrolei e lhe ofereci.
Mesmo em frente à entrada do hotel estava uma construção retangular aberta com muros de cerca de 1 metro. Fui ver o que era. Tratava-se de uma casa de banho, com sanitários ao nível do solo, e com divisórias abertas, resguardadas apenas por esse murete de não mais de 1 metro. Mesmo agachados no sanitário, podia-se ver – e conversar – com quem estava ao nosso lado. Homem ou mulher.
Na China Popular a privacidade não é um valor. É mesmo motivo de suspeição.
Da janela do meu quarto podia ver claramente os utentes da latrina. Chegavam, baixavam as calças e cá vai disto. Não se poderia chamar de retrete, que tem uma origem francesa com significado oposto à privacidade que aquela oferecia.
Entretanto, para ocupar o dia livre, decidi fazer uma pequena viagem guiada, apesar desse tipo de viagem não me agradar, até um lago relativamente perto. Era um lago no alto da Montanha de Jade – uma pérola local – e ainda por cima, a cavalo. OK lá vou eu!
Acordei muito, muito cedo, ainda de noite, com o telefone do quarto a chamar para a aventura. Passeio a cavalo na Montanha de Jade…
Estava uma carrinha minúscula à porta do hotel e o rosto da guia, decerto tibetana, cara redonda e avermelhada pelo frio, sorridente, à nossa espera. Descobri que duas chinesas de Taiwan já estavam à espera, tiritando, na carrinha.
Eram editoras, especializadas em edições artesanais, lindíssimas, com papel especial e capas duras, tudo feito à mão, papel incluído.
Lá fomos, a maior parte do caminho a dormir. Quando abri os olhos era dia solto.
Chegámos ao que obviamente era uma pequena clareira, até onde a carrinha, tipo pão de forma encolhida (do frio?) podia alcançar. Tudo tem o seu limite.
De um outro ponto, saindo do arvoredo, vinha um homem trazendo os cavalos pela arreata. Via-os ao longe e desde logo algo me pareceu estranho. Era da distância, ou eram pequenos demais?
Quando chegaram, eram mesmo pequenos demais, minúsculos mesmo. Pareciam póneis. Mas já a carrinha me pareceu pequena demais. Disseram-me para montar. Fiquei com pena das cavalgaduras.
Montei só para reforçar a minha relutância, demonstrando pela evidência: Ah este coração cientista.
Os meus pés não descolavam do chão. E não iria passear a arrastar os pés pelo chão, nem iria castigar o cavalicoque daquela forma desumana. Era evidente.
A guia e o jovem dos cavalos discutiram a situação. Tentei interromper. Não me importava nada de ir a pé. Não iriam decerto a trote por ali acima. Discutiam ainda. Então disse a frase mágica: Não quero que devolvam o meu dinheiro.
Olharam muito sérios para mim, incrédulos. Ora então estava tudo muito bem. Ainda pensei que o jovem teria de ir levar o cavalito para o estábulo, mas não. Uma palmada na garupa e eia pá, lá foi ele e, sim, desta vez, a trote.
Nós partimos, montanha acima, madames a cavalo e eu com o guia dos cavalos e a guia dos turistas, a pé.
O caminho era aprazível, mesmo muito, e a subida não era difícil, por caminho feito e vetusto, por entre árvores enormes, diria centenárias. Talvez cedros, talvez abetos, mas o que mais me surpreendeu foi outra planta, na verdade, plantas, tipo musgo ou líquenes que cresciam pelas folhas dos cedros, tipo barbas, mas longuíssimas, dançando calmamente à vontade da brisa que, felizmente, era suave.
E, de repente, o lago, azulíssimo e não muito longe.
Descemos à margem e recebemos das mãos da guia umas sandes embrulhadas. Tremi de pavor. Mas não, não era a vingança da manteiga de iaque, era uma radiografia de fiambre.
O regresso não teve história. Lá estava a carrinha pão de forma (dos pequeninos) e depois de uma noite mal passada, o regresso a Lijiang.
O problema veio depois, já em Lijiang. Uma crise tremenda de hemorroidas. Tudo o que havia a temer na véspera de uma longa (e bela) viagem de autocarro até Panzihua, já na província de Sichuan.
E aqui entra a médica salvadora – ó abençoada – de consultório mesmo em frente ao hotel, para onde fui conduzido pela rececionista.
Com calma e simpatia ela mostrou-me um pequeno alguidar quase raso e disse à rececionista para me darem água quente. Demonstrou ela que a ideia era misturar as ervas que me vendeu, fazer um chá no alguidar e sentar-me na sua poção miraculosa naquela noite, antes da deita, e de novo ao acordar. E não é que resultou?
Apanhei o autocarro, cheio a abarrotar, e percorri 7 horas de estrada, maravilhosa, entre socalcos de arroz, muitos só água a brilhar e refletindo o azul do céu, outros verdejantes tão intensos como só o arroz pode proporcionar.
O autocarro estava sempre cheio, mas muitos entravam aqui e saíam ali. Tive até oportunidade de ver em ação dois (eram mais) vigaristas. Os que se revelavam, desafiavam todos para jogar às cartas, mas, conforme me explicaram, o grupo contava com outros que entravam antes e denunciavam o jogo dos incautos.
Estava mais interessado na paisagem, apesar da estrada ser frequentemente assustadora. De íngremes subidas e descidas, mas que proporcionavam maravilhosas vistas a cada curva.
No fim de uma volta da montanha, lá se via Panzihua ao fundo. Na verdade, viam-se nuvens negras expelidas por diversas altas chaminés. Uma visão horrível, confesso.
A própria cidade era tão cinzenta como as nuvens da poluição. Mas tinha uma coisa que me fazia estar ali: uma estação de comboio.
Menos de um ano depois, em fevereiro de 1996, um grande terramoto infligiu enormes estragos a Lijiang. Não sei o que sobreviveu.