O Quadro

O meu grande objectivo sempre foi a busca incansável do prazer – a que chamo felicidade. Para o alcançar, socorro-me de tudo o que posso e escolho os meus próprios mecanismos. Mas, apesar disso, a minha vida é enfadonha, repetitiva, sem motivos aparentes de júbi­lo e só uma forte determinação consegue vencer essa mono­tonia.

Certa vez, em Madrid, os meus passos vagabundeavam, ao acaso, ao longo da Calle Santa Isabel. Sentia-me domi­nado pelo desânimo e os meus pensamentos diva­gavam pelos escu­ros labirintos do desinteresse e da apatia. Sem dar por isso, parei junto de um enorme edifício, cuja arquitectura não me impressionou mais que a de outros exis­tentes naquela cidade de tantas construções monumentais.

Era o Museu Reina Sofia.

Espontaneamente e, sem hesitar, levado por um desígnio im­pon­de­rável e irresistível, entrei. Os museus atraem-me. Percorri as imensas galerias que compõem aquele espaço museológico, todas repletas de inumeráveis tesouros, criações de artistas dotados da centelha do génio mas, inexplicavelmente, não me detinha em frente de nenhum. Havia, como que uma força estranha que me atraía e me forçava a continuar.

De súbito, o meu olhar recaiu sobre um quadro solitário que ocupava toda uma parede branca e o desejo de continuar cessou.

Parei. A obra era Guernica, o magistral quadro simbolista, de Pablo Picas­so. Natural­mente, já o conhecia através de inúmeras reproduções que tinha visto mas, perante aquela obra forte, genuína, original, tremi de emoção.

Foi quando reparei que não havia ali apenas a arte de um génio representada num quadro.

Irrompia da tela um grito de revolta, intempestivo e brutal, absolutamente audível e insuportável. É um quadro sonoro onde a voz do pintor se mistura com gritos de dor dos moribun­dos anónimos, relinchos de animais atingidos e explosões provocadas pelo bombar­deamento assassino.

A infâmia está na origem daquela pintura. A raiva e a dor de um povo indefeso e inocente massacrado pela barbárie do opressor brotam da garganta de cada figura pintada por Picasso.

Guernica mostra, de forma ímpar, a tragédia da guerra, a mais amarga das teologias, e o sofrimento que ela impõe aos indivíduos, particularmente às populações civis.

Para mim, este quadro é uma obra monumental e uma perpétua recor­dação da catástrofe da guerra civil de Espanha. No entanto, também o vejo como um hino solene, cujas trompetas ressoam, em uníssono, na mente dos homens, num apelo à paz e à fraternidade.

A revolta contra a injustiça, a indignação e o lamento pelos mortos, fizeram aflorar-me as lágri­mas aos olhos.

Deixei o Museu, não com a alegria que lá esperava encon­trar, mas com a frágil esperança de que a humanidade pode ter salvação, enquanto houver homens que lutem por ela.

 

Reinaldo Ribeiro

 

 

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