Pátria dos Livres? A Sério?

Dizem que os EUA são a pátria dos livres… Demorei muito (demasiado) tempo para ultrapassar a propaganda, para começar a ver a tal de “América açucarada” tão propalada, tão presente nas nossas vidas, quer pela força dos ecrãs, televisão e cinema, quer dos livros, das modas, tudo.

Só muito mais tarde compreendi como tantos e tantos americanos estavam excluídos dessa liberdade…

Também o resto das Américas, norte, centro e sul, não gostam nada dessa arrogância de ser apenas aquele país a “américa”. Ainda menos com a ideia de a fazer grande outra vez.

Tinha prometido ao meu filho levá-lo à Disneylândia. Já o meu pai me tinha prometido e acabou por não cumprir. Manda a verdade dizer que já o tinha levado à Disneylândia de Tóquio, mas nas suas palavras, “essa não conta”. Nem contestei.

Para cumprir a minha promessa, parti de Macau e fiz uma paragem na Índia, com especiais preocupações com a segurança naquele imenso país que parece venerar o caos.

Contudo, ficou claro que era em Nova Iorque, Washington e Orlando, e todos os locais que visitei nos Estados Unidos, que senti com realidade premente a minha segurança em perigo.

Tinha família em Nova Iorque, em Long Island, que nos acolheu com imensa simpatia e enorme hospitalidade.

Nas primeiras horas, para desentorpecer as pernas, aconselharam-nos a visitar o parque, mesmo ali perto, onde estava um campo de “soft ball”, uma versão de baseball para crianças. Lá fomos.

Nunca percebi muito bem o apelo do baseball, e ainda menos o do cricket, convenhamos. Mas lá estava ele, o campo amplo, no meio de um grande parque, ainda mais amplo, a perder de vista, com bancadas e vários pais a assistir aos movimentos dos seus filhos.

Meti conversa com um dos pais que estava, tal como eu, encostado à vedação. “Que fixe eles terem feito este campo para as crianças”. Respondeu-me com cara de pau: “Que queres dizer com “eles terem feito”? Fomos nós que fizemos! Angariámos fundos com garrafões nas lojas, todos metiam moedas ou notas e foi com esse dinheiro que mandámos fazer isto”. Nós.

Foi assim, logo a abrir. O papel dos cidadãos lá e o papel do estado cá. Nada a ver, outro filme completamente diferente. Seria isso “a pátria dos livres”?

No regresso passámos por um McDonalds, que também era diferente. Nada de cerveja, ou qualquer tipo de álcool, mas com várias iguarias que não entram nas ementas daqui. Uma delas, o ice cream soda, foi logo a primeira sugestão da jovem que nos estava a atender. O que era?

Num copo de pint, uma medida de líquidos que se aproxima do meio litro, com uma ou duas bolas de gelado a flutuar no refrigerante, tudo à nossa escolha: o sabor do gelado e o tipo de refrigerante. Mais doce do que muitos pacotes de açúcar!

Percebi depois o impacto destas opções alimentares no perfil dos americanos com que me cruzava na rua. Tudo obeso. O meu frigorífico era menos volumoso, apesar dos seus 1,80 metros.

Ainda em Portugal, em duas das múltiplas entrevistas que tinha feito a exportadores portugueses, eles me tinham explicado que as coisas que exportavam para os EUA tinham de ser diferentes, para o grande, nas mobílias: camas com seis pés, cadeiras sobredimensionadas… finalmente confirmei ali porquê.

No dia seguinte fomos para Manhattan. Visita ao Museu de História Natural, uma velha aspiração de infância, ao Museu de Arte Moderna, um cruzeiro no Hudson e passear na Broadway, claro, Um ou dois dias em cheio!

Tudo começou no metro. Fomos a horas desencontradas da maior afluência e com a cara de felicidade que a maior parte dos turistas tem. Mas não em Nova Iorque.

Além de mim e do meu filho, seguiam também um tio, nosso anfitrião, e um primo meu. Filho do irmão da minha mãe, bastante mais novo do que eu.

De repente, de forma completamente inesperada, salta um nova-iorquino do banco ao meu lado e dirige-se ameaçadoramente ao meu jovem primo, gritando: “estás a rir-te de quê?” e insistiu: “estás a rir-te de mim?”, e levou a mão ao bolso.

O meu tio, residente de longa data de Nova Iorque, saltou de imediato para a frente do outro e falou de forma calma e pausada, explicando que éramos familiares, de férias, visitando a cidade e que não havia causa para mal-entendidos. Porém, para reforçar a sua posição apaziguadora, levou também a mão ao bolso.

Ficou a coisa por essa avaliação, esse jogo da minha pistola/navalha é maior do que a tua, o que acabou por resolver a questão. Além disso percebeu que nós éramos quatro e não apenas o meu primo. Acabou por ir para outra carruagem…

Pensei que tinha sido um episódio lamentável. Não era. Era todo um país num estado lamentável.

Os passeios de Nova Iorque convidavam à deambulação, planos e de pavimento impecável. Porém, as pessoas não eram simpáticas. Pior, até havia o conselho, reiterado em vários guias, que aconselhava a andar com ar apressado e como quem estava atarefadíssimo.

Pelas ruas, vários sinais de trânsito tinham, também eles, um ar ameaçador: Proibido tudo e não era para brincadeiras! E tudo isto por escrito em sinais de trânsito, para anular qualquer dúvida e em tom coloquial para todos entenderem.

Fomos aos museus, grandes museus, acrescente-se, e tropeçamos por diversas vezes em artistas de rua que não ficariam mal em nenhuma sala de concertos.

Na Broadway parámos numa loja em que uma jovem lindíssima e sorridente nos convidou. Acabei por comprar um cinto de couro e umas calças de uma ganga excelente, quase aveludada, como nunca antes tinha visto, e baratas. As compras valiam por si, não se deviam à rapariga, mas o meu primo veio sussurrar ao meu ouvido: “é judia”. Não sabia o que dizer. Não estava habituado a distinguir as pessoas pela sua etnia. E vivia em Macau, com pessoas de 20 países diferentes, falando 5 ou mais línguas à mesa.

Em vários pontos, encostados à parede, negros enormes olhavam para nós com ar de quem nos media, de quem avaliava o que poderiam ganhar. Sentia-me roubável, uma presa fácil para aqueles gigantes.

Quando nos aproximámos de um polícia para procurar a localização do MoMA, a primeira coisa que ele fez foi levar a mão à coronha da pistola. Sem retirar a mão, deu-nos a informação que procurávamos. Evidentemente, ali, não pode haver deslizes.

Há um dito, “o minuto de Nova Iorque”, que é o tempo que uma pessoa demora a ser roubada. Esse minuto encontrámo-lo mais tarde, em Atlantic City, no famoso Boardwalk, onde parávamos à beira mar para algumas fotos, e, atrás de nós, um grupo de três roubava descaradamente um qualquer transeunte. E outro, um pouco mais à frente.

As gaivotas ofereciam um espetáculo à parte, comendo à nossa mão no meio da sua característica algazarra. Uns americanos, mais tontos do que a média, começaram a criticar darmos batatas fritas às gaivotas. “Mas elas comem lixo!” argumentámos. Afastaram-se abanando a cabeça.

Regressámos a Nova Iorque tal como chegáramos, de autocarro pago pelos casinos.

No dia seguinte era tempo de irmos num cruzeiro pelo rio Hudson.

Cruzeiro no rio Hudson

Entretanto, um bairro de Brooklyn, Crown Heights sublevou-se. A razão foi o atropelamento de duas crianças negras por uma limusina que transportava o líder judeu, Rabbi Menachem Mendel Schneerson, da Chabad Lubavitch, um movimento Hasídico, Uma das crianças veio a falecer.

O problema é que chamaram uma ambulância para transportar o tal líder para um hospital e essa ambulância recusou-se a levar a criança. Era um hospital privado e de elite. Não há borlas, não há serviço nacional de saúde, nem INEM. Ou tens dinheiro, ou morres na rua.

A criança morreu mesmo e toda aquela tensão explodiu: motins, fogos, saques…

A seguir ao triste acontecimento apareceram logo os líderes negros – autênticos profissionais que perseguem a desgraça – invadiam as tv, além da mãe do menino, restante família, vizinhos, etc. todos naturalmente chorando.

Acontece que, estando nós no tal cruzeiro pelo rio Hudson, ao passar pelas margens de Brooklyn, começaram a chover pedradas no barco. Sem abrandar nem parar. A revolta não conhecia perdão.

A Disneylândia de Orlando

Finalmente, chegou a viagem a Orlando, na Florida, e à Disneylândia.

Fomos de carro, confortavelmente, tendo eu também conduzido por umas horas.

A auto estrada era descomunal. Umas 5 vias para cada lado e no meio, o separador relvado, que dava para construir facilmente uma autoestrada das nossas.

Os meus anfitriões estavam sempre a avisar-me: “mais devagar, mais devagar”, mas eu seguia a uns 70 à hora, se bem que o conta quilómetros era, na verdade, um conta milhas… “Aqui é assim, e há polícias e câmaras por todo o lado.”

Ficámos num hotel da cadeia Ramada, convenientemente quase em frente a uma Pancake House e um Wendys um pouco mais abaixo.

A esposa do meu primo lembrou-se que o Wendys estava com uma promoção de buffet mexicano e lá fomos nós.

O buffet mexicano era comida que nunca mais acabava por 5 dólares. Mas também ali não havia cerveja ou qualquer outra bebida alcoólica. Enfim, não se pode ter tudo. Mas não deixa de ser estranhamente dissonante a relação ambígua com o álcool que caracteriza aqueles americanos, contrastando com tanta liberdade apregoada.

Tínhamos caminhado uns metros no regresso quando somos ultrapassados por um carro da polícia que parou logo um pouquinho depois.

Vimos dois polícias sair do carro, abrindo as portas e de imediato colocar as armas apontadas, apoiadas pelo vidro aberto. Foi então que reparámos que um pouco mais à frente, estava o corpo de um homem, imóvel, deitado na estrada, mesmo encostado à berma.

Os polícias gritaram qualquer coisa. O homem continuava imóvel.

O polícia da esquerda deu alguns passos, pousou o joelho direito no chão, sempre a apontar a pistola. O homem imóvel.

O polícia do lado esquerdo fez a sua corridinha, sem deixar de apontar a arma e quase chegou ao homem. Foi a vez de ser ele a apoiar o joelho e dar o grito. Nada,

Finalmente, o do lado direito foi mesmo junto do homem e deu-lhe um pontapé. O homem manteve-se imóvel. Lá enfiaram as armas nos coldres, regressaram à sua viatura e falaram pelo intercomunicador: uma ambulância!

Ainda procurei alguma câmara que justificasse o filme que acabara de presenciar. Não, os filmes é que copiam a realidade. É mesmo tudo assim. O homem foi transportado e manteve-se imóvel. Não sei se estaria morto, pelo menos não foi coberto.

No dia seguinte era impossível demover o meu filho das panquecas. Nem eu.

Depois das panquecas, montanhas delas regadas prodigamente com xarope de ácer, caminhámos um pouco pela rua, olhando para as montras.

Um pouco mais à frente, uma grande loja de enormes montras e com um letreiro luminoso que gritava, GUNS, GUNS, GUNS, atraiu a nossa atenção.

O espaço central da grande loja era ocupado por vários mostruários de roupa, a maior parte, militar, mas também de caça.

Atrás do extenso balcão corrido, expositor de vidro para várias dezenas de revólveres, apresentava-se, montado na parede, um armeiro impressionante, com caçadeiras, espingardas, e também o que me pareceram metralhadoras, ou espingardas automáticas tipo G3 (nem conheço as armas), mas de repente, mais acima da espingardaria, o que pareciam bazucas, e também aqueles disparadores de 4 mísseis.

Seria possível? Considerar aquilo como defesa pessoal, poder rebentar com alguém à força de mísseis?

Espetáculo Espetacular

A Disneylândia e os Estúdios da Universal foram simplesmente fantásticos. A grande diferença entre esta e a de Tóquio estava precisamente nos americanos, que têm uma capacidade de espetáculo fabulosa, fantástica, inacreditável.

Música, dança, animação, os artistas americanos eram simplesmente inultrapassáveis. Tenho a certeza que nos EUA, levantando qualquer pedra, não sai um, mas magotes de artistas de todas as artes possíveis e imagináveis.

Por todo o lado, nas ruas, nas esquinas, havia bandas, músicos, bailarinos, acrobatas, malabaristas, com uma perícia incomparável. Realmente impressionante.

Todos de uniformes diferentes, mas igualmente impecáveis, vistosos e seguros do seu poder atrativo. Num instante asseguravam uma pequena multidão à sua volta.

As atrações eram quase idênticas às das diferentes Disneylândias, mas há uma diferença enorme.

Logo no início havia dois pavilhões sobre a história dos Estados Unidos. Todas a exacerbar um patriotismo que, nesta Europa de tantos países já não estamos habituados.

Na verdade, esse patriotismo exacerbado podia ver-se por todo o lado, nas ruas residenciais, pacatas, era rara uma casa que não tivesse um poste com a bandeira pregado ao relvado.

Nem sequer faltavam as cerimónias do hastear e retirar a bandeira. Diariamente!

Washington, Capital do Império

No meio desta viagem estava uma visita a bons amigos em Washington, onde residiam.

Foi um prazer revê-los. Já nos tínhamos encontrado em Macau e, claro, em Lisboa.

Washington é nitidamente concebida como uma capital imperial, desenhada para aumentar o orgulho nas visitas dos seus súbditos, a reverência nas dos seus aliados e o temor nas dos seus inimigos.

Porém, é bom não esquecer que, na altura, a esperança de vida de um homem negro residente em Washington, não passava dos 40 e poucos anos de idade.

Smithsonians

Contudo, os museus, especialmente o complexo do Smithsonian, que não abrange apenas museus – adivinharam, o maior do mundo – nem apenas em Washington, é deslumbrante. De fósseis a naves espaciais, há de tudo.

A meio desta visita os medicamentos do meu filho acabaram. Era um antibiótico infantil, muito genérico, que não colocava nenhuma dificuldade. Ainda por cima, fabricado por um laboratório americano.

As farmácias não mo vendiam. Mostrei a caixa, mostrei o menino… Nada. Tinha de ser prescrito por um médico americano. Havia que deslocar-me a um hospital.

Preenchidos os formulários, cumprida a espera pelo médico, lá chegou a nossa vez. O médico examinou o meu jovem, de espelhómetro na testa e estetoscópio ao pescoço, tentava lobrigar qualquer coisa que não estava lá. Acabou dizendo o óbvio: “pois, inflamação na garganta, tem de tomar antibiótico…”

Este episódio custou-me 547,00 dólares: paga e não bufes! Lá está, se não os tivesse…

Nova Iorque Outra Vez

De regresso a Nova Iorque, o plano era ter mais um último dia na cidade, sem grandes destinos, só a sentir a sua pulsação.

Azar.

Um condutor do metro, sob a influência de álcool (ou crack?), fez o seu comboio descarrilar arrastando os pilares, matando 5 pessoas instantaneamente e ferindo gravemente 161 outros passageiros, isto, mesmo no subsolo da Lexington Avenue, via central em Manhattan, que cedeu dois centímetros devido ao derrube dos pilares do túnel.

O maior desastre no metro em várias décadas…

À superfície todo o trânsito estava proibido. O perigo de desabamento era muito real. Só ciclistas e patinadores, que eram muitos e atingiam velocidades assustadoras e obviamente adoravam rasar os peões. Polícias por todo o lado, fitas vermelhas vedando a rua e respetivos acessos….

Igualmente impressionante era a “escala americana”, desde os parques de estacionamento até à estatura das pessoas. Caramba, não eram obesos, eram gigantescos. Provavelmente à força de hambúrgueres. As pessoas, claro, não os parques de estacionamento. E decerto não os edifícios, fora os centros de algumas cidades, eram de dois ou três andares. Vá lá quatro.

Por outro lado, confesso que, mesmo Manhattan foi dececionante como epítome do tal urbanismo intenso de mega cidade de arranha céus. Pelo menos para mim que conhecia as grandes cidades orientais, Hong Kong, Taipé, Tóquio, Singapura… Provavelmente Nova Iorque terá tido esse lugar cimeiro em tempos idos, mas depois de constituir exemplo, na minha opinião, foi ultrapassada…

Será isto o exemplo do deslocamento para oriente do epicentro do poder humano? Será esta uma das razões, entre tantas, para os ditadores dizerem que o ocidente está decadente?

Além disso, Terra dos Livres? Quais? A esmagadora maioria das minorias evidentemente não se sente livre, pelo contrário, sente que os outros são livres à custa deles.

E ao menor episódio, naturalmente, digo eu, explodiam como panelas de pressão com demasiado calor.

Motins, fogos, saques…

 

NOTA: Estou bem consciente dos inúmeros contributos que o povo americano ofereceu – e oferece – ao nosso mundo. Estou muito consciente do seu papel na luta contra ditaduras execráveis, desde Hitler a Putin. Confesso, igualmente, que, apesar de tudo, prefiro estar na esfera de influência deste império do que num dos outros que se alinham no horizonte de possibilidades. No entanto, a narrativa propagandística que nos inunda precisa de contraponto.

Posto isto, tudo o que escrevi é a pura das verdades que vivi em 1992, após o “Reagonomics”, no primeiro mandato de Bush, pai, que sucedeu a Reagan. Se parece um desastre, bem… é porque foi mesmo, para eles e para nós. As consequências estão aí e não dão sinais de parar.

Inclusivamente, o “pai” do neoliberalismo, Milton Friedemann, após o colapso da Lehman Brothers que deu início à crise de 2008, confessou que estava errado. A pedra angular do neoliberalismo de que o mercado se regula a si próprio, evidentemente provou-se falso. No entanto, parece que os seus seguidores não o ouviram bem…

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