Relatório de 1946 sobre a Trafaria e a Costa da Caparica

Trata-se de mais um texto fornecido pela nossa amiga Maria João Sousa Martins, que de novo muito agradecemos. É um documento muito interessante sobre uma época crucial para a nossa região, onde o que agora consideramos passado, era ainda presente. Porém, estavam claros, como é abundantemente referido no Relatório, os sinais do futuro, ou seja, aquilo que agora está à nossa volta.

Tal como Maria João Sousa Martins no explicou, este Relatório foi escrito por “Etienne de Gröer, arquitecto-urbanista, de nacionalidade francesa, trabalhou em parceria com João Guilherme Faria da Costa num trabalho realizado no início dos anos quarenta do século passado, destinado à elaboração do plano de urbanização de Almada. Deste trabalho resultou um relatório apresentado em Setembro de 1946 de que aqui se apresentam dois excertos.”

O Relatório é particularmente interessante, não apenas pela notícia que nos dá do “estado das coisas” naquela altura, em que a Costa de Caparica pertencia ainda à Freguesia da Trafaria, mas também por ser muito transparente e até cândido em relação ao quadro mental da época, o que nos dá uma notícia diferente, sobre nós próprios, leitores de 2012, e o percurso feito pela sociedade portuguesa que se distanciou, em tantos domínios, das apreciações que podemos ler. E com que prazer…

 

PLANO DE URBANIZAÇÃO DO CONCELHO DE ALMADA: ANÁLISE E PROGRAMA. RELATÓRIO, 1946, por Etienne de Gröer*


Trafaria e Costa de Caparica

 

As duas principais aglomerações do Oeste do concelho são a Trafaria e a Costa de Caparica, denominada actualmente “Praia do Sol”, nome que é, aliás, muito característico.

 

Trafaria: A Trafaria é uma capital de freguesia de que depende também a Costa de Caparica.

 

Esta localidade tinha, em 1940, 1716 habitantes, repartidos em 679 lareiras e cerca de 700 famílias, das quais hoje apenas 40 vivem bem. Há na Trafaria 330 famílias indigentes, o que quer dizer que cerca de 50% da população se encontra nesta má situação económica.

A localidade foi, na sua origem, uma aldeia de pescadores. Aproximadamente no ano 1914, vieram instalar-se nela 3 fábricas de conservas de peixe. Nesta altura, o peixe abundava na costa da Trafaria, de tal modo que as fábricas empregaram, além dos homens locais, operários que ali chegaram de fora. Mas actualmente, como já o dissemos, não se acha peixe nenhum perto da costa. Ora, os pescadores não estão apetrechados para poder pescar ao largo da costa. De maneira que a base económica da Trafaria deixou de existir. As duas fábricas de conservas não trabalham senão por intermitência, e a população local caiu na miséria.

O único expediente da localidade reside no facto de o desembarcadouro para os turistas da Costa de Caparica estar neste ponto da margem Sul do Tejo. A Trafaria é portanto um lugar de trânsito e de estacionamento para os autocarros desta carreira.

Existem em volta do embarcadouro vários cafés e restaurantes que servem principalmente os turistas de Lisboa e que estão particularmente frequentados nos domingos de Verão quando multidões enormes se encaminham para a grande praia da Caparica e inundam mesmo a praia local.

A praia da Trafaria não é conveniente para os banhos de mar, pois que as correntes do Tejo trazem para cá e acumulam em frente dela todos os despejos dos esgotos de Lisboa.

A primitiva aldeia nasceu de um triângulo natural disposto entre o Tejo e as duas encostas de um vale que aí desemboca; as casas mais antigas, por vezes muito pitorescas, estão aí agrupadas. A localidade cresceu depois mais para o fundo do vale e ao longo da estrada (ramal da E.N. nº. 76-2ª) que liga com a Costa de Caparica. Construiu-se tudo em grande desordem. Há um número exagerado de ruas, muitas das quais são demasiado estreitas, e todas elas (ou quase) não tem arranjo nenhum, nem são conservadas de qualquer maneira. Reina em muitos sítios um cheiro desagradável por falta de instalações sanitárias nas casas.

Há horríveis barracas, feitas com pranchas e com ferro-velho, e um grande número de casebres de todas as espécies que servem como habitação para uma grande parte da população, que por causa disso sofre de todos os danos físicos e morais. A tuberculose reina aí.

Ouvi dizer que não era raro verificar que numa destas barracas minúsculas habita uma família numerosa composta por 12 ou 13 pessoas, o que cria uma porcaria inimaginável e uma promiscuidade depravadora.

Felizmente, a Trafaria possui uma boa escola primária e um bonito mercado.

Está actualmente em obras um pequeno “bairro para pobres”. As suas casas são bem pequenas, mas a sua criação respondeu a uma necessidade imperativa e deve ser considerada como o primeiro passo para o melhoramento da saúde física e moral dos indigentes da Trafaria.

O bairro contém 36 casas com 3 divisões, e 14 casas com 4 divisões. As casas estão dispostas numa parte da mata do Estado e estão rodeadas de árvores que será preciso conservar na medida do possível.

Na parte Este da Trafaria, num terraço acima do rio, há uma cadeia militar e, na parte Sudoeste do vale, um quartel. Nos pontos altos que dominam a região estão instalados dois fortes, e a maior parte da mata que veste os declives do planalto é pertença do Ministério da Guerra (zona militar).

No entanto, há também atrás da estrada nacional, uma linda encosta arborizada que não constitui parte deste domínio militar e do alto do qual se disfruta uma vista esplêndida sobre o Tejo e sobre as vastas paisagens da banda oposta. Algumas pessoas muito espirituosas colocaram ali umas casinholas de fim-de-semana. O sossego, a frescura e a beleza da vista de que elas gozam são objecto de inveja.

Grandes e lindas matas estendem-se ao pé desta encosta e a Oeste da Trafaria e pertencem ao Estado e à Companhia das fábricas de Explosivos. Nos domingos de Verão, estas matas estão cheias de pessoas que aí resolveram fazer um pic-nic, vindas de Lisboa, o que é muito natural, visto estas florestas serem as mais acessíveis aos habitantes da capital, entre todas as dos seus arredores.

Com efeito, a passagem do Tejo num barco é muito agradável e não custa caro.

Infelizmente, o facto de haver nesta mata duas fábricas de explosivos, com os seus respectivos depósitos, constitui um perigo para toda esta gente, perigo que se agrava à medida que cresce o número da população local e dos passeantes. Não devemos perder de vista a possibilidade de qualquer falta de cuidado da parte dos fumadores ou das mães de família que trazem consigo pequenos fogões para poderem cozinhar durante estes dias feriados. Ora, vemos ao longo da praia da Trafaria uma verdadeira muralha contínua, feita de pedaços de madeira: são as barracas fixas para o “camping”, quase encostadas umas às outras, cuja construção foi autorizada pela Direcção do Porto de Lisboa, sem que tivesse sido aplicada uma regulamentação severa.

É fácil imaginar que um incêndio venha, num dia qualquer, a estalar neste agrupamento perigoso, transformando-se forçosamente num braseiro que porá fogo à mata. Este poderá chegar até aos depósitos de explosivos, que se encontram nela e mesmo bastante perto das ditas barracas.

Nestas condições é lógico preconizar o afastamento das fábricas de dinamite para fora deste sítio já tão povoado.

A mata do Estado constitui uma separação entre a Trafaria e a Costa de Caparica e entre a Trafaria e a aglomeração que se chama “Quinta de Sto. António”. A mata representa, no seu estado actual, um dos grandes atractivos da Trafaria e da Costa de Caparica. Uma certa parte dela está ocupada pela organização da F.N.A.T. Várias outras organizações semelhantes pedem constantemente ao Governo uma concessão de terreno na mesma mata, afim de instalar ali colónias de férias ou casas de repouso. Não há dúvida que viver nesta mata seja muito agradável. Mas não devemos esquecer o seguinte: se estas licenças forem concedidas, a mata encontrar-se-ia, muito em breve, dividida em pedaços e quase completamente cheia por construções (ainda bem se as árvores não se estragassem!). Isto quer dizer que ela deixaria de existir como passeio público, com grande prejuízo da Costa de Caparica, da Trafaria e dos habitantes de Lisboa.

Foi à margem da Estrada Nacional Nº. 10 – 1ª, entre esta estrada e a encosta abrupta do planalto, que foi construído o loteamento que tem o nome de Quinta de Sto. António, pois que ocupa as terras desta quinta.

Este sítio não possui muitos atractivos na época de Verão, ficando um pouco encaixado entre a mata e a encosta o que o torna muito quente por causa disso. Somente a proximidade da mata, que se estendo do lado oposto da estrada, lhe dá algumas vantagens. Pelo contrário, este cantinho é muito bom para uma estação de Inverno, sendo protegido pela mata contra as intempéries do Oceano; muitas famílias de Lisboa, pertencentes à classe média, procuram viver aí durante o Inverno, por razões de saúde. Ora, este talhamento foi feito e construído de uma maneira comercial, é muito denso e mal arranjado, sem qualquer compreensão dos princípios do urbanismo, o que o torna um bairro desagradável.

Costa de Caparica ou Praia do Sol e Cova do Vapor

 

Uma magnífica praia de fina areia estende-se sobre mais de 25 quilómetros, ao longo da costa Oeste do concelho e até ao Cabo Espichel. É a melhor praia dos arredores de Lisboa e tem a vantagem de ser voltada para o Oceano. A água do mar é aqui muito mais pura do que nas outras praias próximas da capital.

Foi nesta costa que se formou a primitiva aldeia chamada “Costa de Caparica”.

Do lado Norte, esta localidade está ladeada por uma grande mata nacional, que é continuada pela mata da Sociedade do Fabrico dos Explosivos e por uma outra que se estende sobre as encostas da Trafaria, que pertence ao Ministério da Guerra. É a mata mais acessível para os habitantes de Lisboa.

Estes dois elementos (praia e mata) e o preço relativamente reduzido da travessia do Tejo fizeram o grande êxito da Costa de Caparica, que não era, há dez ou doze anos, senão um agrupamento de barracas de pescadores e veio a ser uma estação balnear muito frequentada.

Infelizmente, o êxito fez também a desgraça da “Praia do Sol”: construiu-se muito e sem qualquer plano previamente estabelecido ou qualquer fiscalização. Veio a ser uma aglomeração totalmente contrária a todos os bons princípios. As ruas são inumeráveis e não calcetadas, as casas são minúsculas, empilhadas uma ao pé da outra, sem espaço à volta de si e com uma distribuição interior feita sem a mínima compreensão. Não há um só jardim, nem mesmo uma só árvore que pudesse refrescar esta densa acumulação de casas sobreaquecidas pelo sol ardente.

(Mas temos de notar que nos raros pontos onde árvores foram plantadas, estas rapidamente se desenvolvem).

Aqueles que empreenderam a realização do desenvolvimento desta localidade não perceberam que de tal forma não se atingiam resultados duradouros. Os fregueses, se eles tiverem a escolha, não quererão continuar a vir alojar-se em casas desprovidas de conforto, sem qualquer jardim, e que se alugam excessivamente caro.

A construção de um bairro balnear moderno, ao lado da aglomeração actual, talvez seja a única maneira a adoptar para obrigar os especuladores a reflectir um pouco sobre o que eles fizeram. Seria mesmo muito bom fazer-lhes concorrência (como preconiza o meu associado, o Sr. Arquitecto J. G. Faria da Costa) pela urbanização de outros cantinhos nesta praia, um pouco mais afastados, é verdade, (como a Fonte da Telha), mas cuja situação é ainda mais bonita do que a da Costa de Caparica. Bastaria construir até eles uma estrada de circulação rápida e organizar transportes económicos.

A aglomeração da Costa de Caparica está disposta com um certo afastamento do mar e está separada deste por uma duna, parcialmente artificial. A beira da água mais próxima fica cerca de 330 metros das casas. Portanto, esta praia de areia tem uma largura um pouco excessiva para os banhistas, cansados pelo sol e pelos seus banhos, sobretudo nos dias de grande calor. Por vezes, no fim da tarde, o caminho que eles têm de percorrer torna-se ainda mais desagradável, por causa do vento do Norte que varre a praia lateralmente e levanta cegantes turbilhões de areia. Derivado a isso, o meu associado concebeu o projecto de avançar as construções até à beira da água.

O futuro da Praia do Sol reside no seu arranjo turístico e não na pesca, que não dá ganhos suficientes. Os aborígenes deveriam exercer profissões ligadas com o serviço da população flutuante, visto haver neste sítio a possibilidade não só de desenvolver a localidade como praia de Verão, mas também como estação de Inverno. Nesta eventualidade, a Costa de Caparica deve adquirir um carácter de arranjo mais cuidado e de maior conforto, de que carece muito menos uma estação de banhos de mar.

Mais para o Norte, além da Mata Nacional, encontra-se a “Cova do Vapôr”, um pequeno porto formado por uma enseada entre as dunas, perto da embocadura do Tejo.

Sobre a língua de areia que se formou entre o rio e o mar, ergueram-se minúsculas barracas de madeira, sobre estacaria, construídas nas parcelas das dunas que alugou aos seus proprietários a direcção do Porto de Lisboa. São casas de fim-de-semana ou de “camping”.

Lamento ter de dizer que tudo isto foi construído na maior desordem possível: as casinholas estão demasiado perto umas das outras e apresentam, no seu conjunto, o aspecto de uma aldeia de pretos. Não têm nem água, nem esgotos. As águas usadas e tudo o resto deita-se na areia, que se torna progressivamente insalubre e de mau cheiro.

 

In Anais de Almada, 7-8 (2004-2005), pp. 151-236

 

Notícias da Gandaia

Jornal da Associação Gandaia

2 thoughts on “Relatório de 1946 sobre a Trafaria e a Costa da Caparica

  • 16 de Março, 2013 at 15:43
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    É o Portugal que sempre tivemos… o Alqueva também se discutia em 1940… Para a Trafaria também se falava num caminho de ferro para ligar ao Montijo, na época…. Discutimos, não fazemos e quando se toma a decisão volta-se a discutir porque o tempo não pára e a realidade é outra. Somos uns empatas improdutivos!

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  • 20 de Outubro, 2012 at 19:10
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    Foi escrito em 1946, mas podia ter sido escrito hoje. Especialmente no que concerne à desordem da construção e ao não aproveitamento do potencial turístico que ainda está para acontecer.
    Claro que hoje as soluções não poderiam ser nunca as de então, até porque a realidade nalguns aspectos não é mais a mesma, mas o desinvestimento nestas populações e áreas tem sido catastrófico, para as populações e para o próprio concelho. Será que alguma vez se vai pensar numa solução sustentável?
    Passaram só 66 anos, que é isso afinal?

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