RUI

– Rui –

 

– Olá, Companheiro!

É com esta saudação que tu abres a conversa quase diária pelo telemóvel. Provavelmente vais a caminho de casa pela demorada IC19 e aproveitas para não estares sozinho, porque não gostas nada de isolamento e vais fazendo o rescaldo do dia profissional.

A conversa deriva depois para os mais variados temas e por vezes estes 40 anos em comum trazem as memórias mais loucas, sobretudo dos primeiros anos, pois eramos mais novos.

Conheci-te em 71, quando eu trabalhava com a tua Irmã num escritório em Lisboa e tu estavas na Guiné, onde eu já tinha estado até 68.

Ela deve ter feito grandes, comentários de parte a parte, pois eu já conhecia vários pormenores da tua pessoa e tu por certo, já terias uma imagem de mim, de modo a que quando nos vimos realmente “foi amor à primeira vista”.

Estás de acordo em salientar nesta conversa as duas grandes áreas? De um lado a profissão e do outro as miúdas?

– Não respondes? Está bem, continuamos.

Casas-te logo a seguir com a J. que conheci mal e apenas retenho desse tempo um almoço em Setúbal, ainda com os teus Pais.

Convivemos durante algum tempo, até que em 73/74 vens trabalhar comigo num cliente que eu tinha ali na 5 de Outubro. Envolvemo-nos de tal forma nesse trabalho que a seguir fundamos uma empresa de contabilidade, onde de dia vendíamos o produto e à noite íamos partir a cabeça ao Zé Borges que era quem nos estava a fazer o programa de contabilidade. A dada altura já tínhamos 3 clientes e o programa estava por finalizar. Grandes marotos…

O pior foi quando os 90 contos do capital se acabaram e não havia grandes sobras para fazer suprimentos.

Já está entretanto a decorrer a faceta picante das nossas cabeças, com muita, mas mesmo muita noite, eramos quase os “gerentes” da Lareira, um bar que havia ali entre o Rato e as Amoreiras, com as namoradas possíveis e outras imagináveis.

– Concordas que era assim? Ou ainda pior? Bem…

O Algarve é o ponto de diversão por excelência. Começamos por ir de férias no teu Escort, toda a viagem a berrar as cantigas da época, com percussão no tablier, que não chega inteiro ao Algarve.

Dormimos onde calha, nos campos cultivados, dentro do carro com os pés de fora. Sem surpresa um dia acordamos com uma cabra a lamber as solas dos pés para nos acordar. Havia uma nora, cuja bombagem era feita daqueles tubos em circunferência e que punham a água à nossa disposição pela manhã. Eu rapava o cabelo e barba e tu só a barba. Seguíamos para Portimão onde no café principal nos era fornecido um reforçado pequeno-almoço sempre gratuito, claro.

Reunimos um grupo de amigos que permite de forma sequencial ter sempre alguém a tomar conta dos nossos filhos na praia do Garrão, onde o dono o senhor António “Tá Certo” nos disponibiliza água para o acampamento, a troco das nossas refeições no seu pacato restaurante. A esposa Margarete tem sempre as unhas sujas, mas faz umas saladas deliciosas. A filha Hirondina (nome resultante de um romance que a mãe lera em miúda) trabalhava por todos.

Vivemos uma autêntica fase de mochileiros, com uma extensa praia para o nosso nudismo. Antes do almoço o Sr. António vem sempre perguntar o que queremos para as refeições e vai a Loulé buscar os pedidos.

Há um pormenor delicioso de que falas constantemente. Quando se tratava de fazer alguma investida na praia para se atacar as veraneantes, eu peço-te sempre: Vai lá tu que tens cabelo!

– Desta não te esqueces nunca… estás sempre a contá-la!

Eu saio daquela nossa empresa e vou trabalhar para o Alentejo. Continuas-te a acompanhar-me ainda que em deslocações breves. Já vives com a M. de quem terás a Rita.

Numa das idas para o Algarve, alguém se esqueceu de pôr o material de campismo no carro e eu fui antecipadamente com a Rita. Claro que quando chegou a hora de dormir estendemos os bancos da frente do teu Escort e ali ficámos cada qual no seu banco, não sem que tivesse levado alguns pontapés dela, dado o seu mau dormir.

Decidimos ir a França numas férias, nesta altura vives então com a Elvira. Vimos deslumbrados com Paris e sentimo-nos pequeninos de novo à chegada. Passamos por Avalon um parque de campismo que guardo na memória, lembras-te?

– Não respondes? Está bem, continuamos que já vais perceber porquê.

Onde gostas de ir e não vamos faz muito tempo é ao Coimbrão, casa da minha família no extremo norte do concelho de Leiria.

Temos nova nota digna de registo aqui, à qual acrescento já, que é a tua postura perante o relógio e que irá perdurar para todo o sempre. O teu entendimento do tempo, dos horários, esse desfasamento que te acompanha sempre e que é do conhecimento de todos os que te rodeiam, não estou pois a cometer nenhuma inconfidência!

Eu diria até que as pessoas que constituem o teu grupo mais ou menos restrito de familiares e sobretudo amigos, sofre por contágio do mesmo problema.

Pessoalmente e por vezes, sou sensível a esse teu comportamento, mas às vezes, passo-me!

Há naturalmente uma história que bem ilustra a tua visão da temporalidade. Estamos para ir para o Coimbrão, um fim-de-semana e muito instado para sairmos a horas por causa do transito, achas que devemos pegar o ultimo passageiro a ir, no inicio da Avenida dos Estados Unidas da América perto da Estatua da Guerra Peninsular. E agora vem o detalhe delicioso, sugeres que deves ficar na descida e não na subida, porque assim será mais rápida a saída pelo Campo Grande.

Assim fica combinado, mas apareces com o atraso habitual, sempre muito bem justificado, como convém.

Ainda há algumas peripécias para recordar sobre o Coimbrão. Quando nos faltam as alfaces para a salada e decidimos ir a uma quinta perto, onde habitualmente as comprávamos. Procuramos o dono que parece não estar naquele momento, insistimos e nada. Vamos ao canteiro das alfaces, arrancamos uma e deixamos uma nota de vinte escudos no lugar da mesma. Para nós estava pago, ele é que sabia se ainda queria fazer o troco…

Numa outra ida chegamos já noite dentro, sabes que horas seriam? Não temos lenha para a lareira e decidimos ir a uma mata roubar madeira. Tinha eu a Dyane e o tronco enorme, só cabe dentro do carro na diagonal e é aí que vai, partindo parte do tablier, como depois se viu que era previsível.

– Já não te lembravas disto? Pelo teu silêncio, acho que não.

Entretanto faço o meu casamento com a Fátima, com registo, fotos, jantar e lua-de-mel. Tudo como deve ser. Serás o meu padrinho de casamento.

Na sequência de alguns desacordos com a segunda empresa a que estávamos ligados com mais sócios, fizemos um corte entre nós por volta de 1986.

Estamos cerca de 14 anos estupidamente sem relação qualquer, exceção feita a um caso de tribunal em que eu era chamado a pagar uma pequena divida fiscal da primeira empresa que fizéramos e de que havia saído em 75, mas como é habitual nestes casos, a escritura faz-se sempre depois. Assim sendo, eu era ainda gerente no período de 81 a 83, em que ocorreu a tal divida.

Sabendo da minha total inocência sobre o assunto vais comigo às Finanças a Queluz para testemunhar, que eu nada tinha a ver com o assunto e que por exclusão de partes, eras tu próprio o responsável para quem sobrava aquele pagamento.

Testemunhas-te contra ti próprio, para me ilibares de qualquer problema.

Sendo justo, não é comum, tanto mais numa altura em que não nos falávamos: Bravo!

Sabes que este gesto perdurará para sempre na minha consciência. Não pelo valor da dívida, mas pela tua coerência.

Depois foi o silêncio absoluto.

As nossas vidas deram grandes voltas e um dia no Verão de 2000 sou assaltado por uma grande dúvida: Porque é que hei-de manter este silêncio com o Rui, que não me faz nada bem?

É um fim-de-semana, telefono para a tua Irmã a pedir o teu número de telemóvel e digo-lhe o que tenciono fazer. Ela responde de imediato que isso te fará muito feliz.

Vens a atravessar Espanha de carro e paras de imediato quando percebes que sou eu.

As palavras trocadas não as recordo por causa da emoção e penso que também não sabes o que dissemos então, ou recordas-te?

– Ficaste tão atrapalhado como eu, claro.

Sei que alguns dias depois, nos reencontramos e passados os esclarecimentos convenientes, tudo volta ao normal como se nada tivesse acontecido.

Sem ressentimentos das duas partes. Bonito!

Há no entanto um pormenor a esclarecer, pois tinhas recebido uns anos antes, um postal de Avalon com um remetente indecifrável e isso causara até alguma fricção com a tua mulher de então, por histórias com mulheres passadas. Foi o meu filho que fez o envio do postal de França, numa ida a Suíça a que fôramos entretanto.

Sorrisos e Paz como tu gostas…

Nesta última década fico contente por verificar que vens sendo bem-sucedido com a tua nova empresa de contabilidade, tal como eu com a minha.

Concluímos que a expressão dizendo que “o todo é maior que as partes” não se aplica ao nosso caso, mostra exatamente o contrário.

Voltas a surpreender-me em 2005 com um fantástico gesto a contar aqui. Tenho um problema despropositado na minha área profissional, sendo traído por um cliente que emenda os dados, por mim já assinados, para obter benefícios junto de um organismo oficial. Disponibilizas-te para testemunha abonatória e vais às inquirições.

Não te encomendo qualquer discurso, mas o certo é que sou absolvido, como se justificava.

É mais uma a teu favor… 2 a 0.

Toda a gente conhece o teu apego ao telemóvel, que é enorme e sei que tens contas altíssimas para pagares. Sendo eu um dos destinatários dos teus telefonemas, passo a não te atender pelo telemóvel e a falar sempre pelo fixo. Começaste por achar ridícula a opção, mas depois, confidenciou-me a Alice, que invertes os hábitos com outros destinatários e as contas baixam, não sem antes te irritares comigo, como é hábito…

 

No dia 7 de Maio de 2012 a tua ex-funcionária Alice telefona-me aflita quase às 10 da noite e que era de todo despropositado…

– Olá, Companheiro!

Era com esta saudação que tu abrias a conversa…

 

Junho 2012

Mfaleixo

4 thoughts on “RUI

  • 20 de Julho, 2023 at 23:47
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    Manuel Fernando acabei de ler, gostei muito.
    Uma estória de amizade perdida no tempo mas restaurada “a tempo”
    um abraço

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  • 11 de Julho, 2023 at 19:02
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    Muito obrigado.
    abraço do mfaleixo

    Reply
  • 11 de Julho, 2023 at 14:41
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    Os aventureiros!! Assim é que é, aproveitar o melhor que a vida nos tem para oferecer.

    Reply
  • 7 de Julho, 2023 at 18:31
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    Muito interessante esse retalho da tua vida, onde a amizade ganha o primeiro lugar. É de continuar!

    Reply

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