Terras da Costa: Carta Aberta

O bairro Terras da Costa, situado, a bem dizer, de costas para as praias da Caparica, é, sem dúvida um daqueles aglomerados de pessoas onde se vive em condições mais do que precárias, apesar de habitado há 40 anos por famílias, quase todas oriundas das antigas colónias.

O imobilismo das autoridades é a razão porque, projecto após projecto, tudo ficou na mesma, pelo menos até à intervenção do Ateliermob Colectivo Warehouse, grupo de arquitectos, urbanistas e cientistas sociais que trabalham, desde 2012, no bairro, e que com os habitantes construiu a Cozinha Comunitária. Agora, mais uma vez para o bairro não ficar esquecido, escreveram uma carta aberta a Inês de Medeiros, que o Notícias da Gandaia reproduz.

Carta Aberta à Sra. Presidente da Câmara Municipal de Almada,

Exma. Sra. Presidente,

Somos uma plataforma de técnicos – arquitectos, urbanistas e cientistas sociais − que tem vindo a trabalhar, desde 2012, no Bairro das Terras da Costa. Este é um bairro informal no qual habitavam perto de 300 pessoas, sem água e sem luz, com casas em condições indignas. A sua população é caracterizável pela sua juventude. Em 2016, cerca de 45 por cento da população residente tinha idade inferior a 18 anos.

Ao longo destes anos conseguiu-se contrariar a invisibilidade das pessoas que ali habitam. Com o apoio do município e da Fundação Calouste Gulbenkian foi construída uma Cozinha Comunitária (considerada uma boa prática por diversas organizações nacionais e internacionais e que obteve o Prémio Archdaily de Edifício Público do Ano em 2016). A Cozinha permitiu criar pontos de água no centro do bairro, anteriormente a um quilómetro, e trouxe uma nova esperança às pessoas que habitam o bairro. Em 2014 era tido como um caso de sucesso de desenvolvimento de trabalho comunitário em todo o país. Comunidades de diferentes origens e etnias organizavam-se numa única comissão de bairro e eram tidas e ouvidas em tudo o que dizia respeito ao seu bairro. Também em 2014 o município anunciou o início de um processo de realojamento a ser realizado de uma forma participada e articulado entre a autarquia, os moradores e com o nosso apoio técnico. Até 2016 conseguiu-se realizar um trabalho continuado, em várias vertentes, que até permitiu que uma parte do bairro fosse demolido de uma forma tranquila e as famílias temporariamente dispersas, tendo-lhes sido garantido que continuariam a participar no processo de realojamento e assegurado o seu regresso à Costa da Caparica para o novo bairro a ser construído. Com aprovação de todas as forças políticas, a Assembleia Municipal de Almada entendeu efectuar uma saudação pública ao trabalho desenvolvido, publicado no Edital 496/XI-3.º/2015/2016 de 26 de Fevereiro de 2016, nos seguintes termos:

1. Saudar o ateliermob e o Colectivo Warehouse pelo reconhecimento do projeto Cozinha Comunitária das Terras da Costa e pela atribuição do prémio de Edifício do Ano de 2016 na categoria ‘Public Architecture’ pela plataforma ArchDaily.

2. Saudar a Associação de Moradores das Terras da Costa e, por seu intermédio, todos os moradores do Bairro das Terras da Costa, pelo trabalho, luta e intervenção permanentes por melhores condições de vida.

3. Saudar a Câmara Municipal de Almada pelo apoio à construção da Cozinha Comunitária das Terras da Costa, pela intervenção e diligências realizadas para a sua concretização, e pela resposta a algumas das necessidades mais prementes da população residente.

4. Manifestar o apoio à Câmara Municipal de Almada na concretização de um processo de realojamento construído com os moradores, passível de assegurar aos mesmos, na Costa da Caparica, uma habitação digna e de qualidade, por intermédio de um processo que aponte a uma melhoria da situação social e económica da população residente no Bairro das Terras da Costa.

Nos primeiros anos deste processo sempre se sentiu um profundo desinteresse do governo e, mais concretamente, do IHRU em participar nesta operação. A nomeação da arquitecta Ana Pinho para a Secretária de Estado da Habitação e a publicação da Nova Geração de Políticas de Habitação, criou as condições para que também o Estado central pudesse participar neste processo e esta comunidade tinha todas as condições para ser um exemplo referencial de boa implementação do programa 1º Direito.

Contemporaneamente, em 2017, um grupo de técnicas com o apoio da CMA e da então constituída Associação de Moradores, conseguiu formalizar um contrato entre a EDP e a Associação que permitiu a chegada de electricidade a todas as casas do bairro. A única forma de contratualização admitida pela EDP era a de um contrato de obras, a ser renovado anualmente, mas com custos elevadíssimos o que faz com que as casas das Terras da Costa paguem a energia mais cara do país − ainda que a maioria dos agregados tenha direito à tarifa social. Mais, o pagamento desta conta tem de ser feita de forma conjunta, estando cada família cumpridora dependente de que todos os moradores paguem a sua conta em tempo útil. Como imaginará, seja nas Terras da Costa seja num condomínio da Quinta da Marinha em Cascais, este sistema cria um ambiente de desconfiança entre vizinhos sendo insustentável no tempo.

Depois de estar garantido o seu acesso à electricidade, dirigimo-nos à Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação no sentido de ser legislada a obrigação da EDP poder fornecer energia individual a cada uma das casas em bairros deste tipo. Iniciativa do qual resultou a Resolução da Assembleia da República n.º 151/2017, de 17 de Julho, que recomendou ao Governo a adopção de medidas para assegurar o acesso dos habitantes de bairros ou núcleos de habitações precárias a serviços e bens essenciais, em particular aquelas que permitam assegurar a prestação do serviço público electricidade e o DL n.º 36/2018 de 22 de Maio que aprova um regime extraordinário relativo ao abastecimento provisório de energia eléctrica a fogos integrados em núcleos de habitações precárias. Ano e meio passado após a sua publicação, é-nos difícil entender porque é que a CMA se demitiu de orientar este processo.

Esta comunicação assume o carácter de uma carta aberta pois desde que este executivo tomou posse, e apesar de termos tentado vários contactos com a Sra. Presidente e vereadora com o pelouro da habitação, ainda não conseguiram encontrar tempo para nos receber e, pelo menos, tomar conhecimento do trabalho que já foi realizado no que diz respeito ao realojamento. Esta comunicação assume particular urgência porque a última informação verbalizada pelo novo director municipal foi a de que já existiria uma solução de dispersão daquelas famílias pelas várias habitações municipais e que estaria expressa na Estratégia Local de Habitação entregue ao IHRU. Ora este procedimento vai totalmente contra os princípios estabelecidos para a construção das ELH, no qual a participação dos moradores e associações representativas é fundamental bem como contra a obrigatoriedade das associações de moradores serem ouvidas constante na Lei de Bases da Habitação que já entrou em vigor. Nessa medida, nem os moradores nem os actores locais em que nos colocamos foram sequer chamados a conhecer o que a CMA decidiu para as pessoas.

Ainda que reconheçamos todo o direito da CMA em ter uma abordagem diferente na sua relação com bairros como o das Terras da Costa não podemos deixar de lamentar que, em nenhum momento, se tenha preocupado em ouvir os moradores e quem lá trabalha há sete anos.

Manifestamo-lo hoje, pela primeira vez e de uma forma pública depois de o termos tentado por diversas formas fazer chegar ao município, esperando sinceramente que esta carta motive um reequacionar dos procedimentos com que está a ser pensada a ELH e na forma como o município se está a relacionar com os moradores e actores deste território do concelho de Almada.

Ateliermob Colectivo Warehouse

Notícias da Gandaia

Jornal da Associação Gandaia

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