“Tios”, “Tesos” e a Caparica
No passado dia 8 de setembro, Diário de Notícias publicou um trabalho de Céu Neves, com fotos de Carlos Costa sobre as praias da Costa da Caparica e os seus banhistas.
Aqui a republicamos, podendo ver o original clicando aqui.
Costa da Caparica. A praia dos “tios” que já foi a praia dos “tesos”
A frase em inglês beach fun & living dá o tom para aquela que poderá ser a frequência das praias de São João. Mas o que faz a diferença é o valor a pagar pelo parqueamento: quatro euros. Falamos das primeiras praias da Costa da Caparica, para quem vem da Trafaria. Muito frequentadas por banhistas de Cascais e de Lisboa com poder económico, famílias com várias gerações e que tratam os filhos por “você”.
No parque, e cobertos por toldos, estão carros de gama alta, a condizer com os bares-restaurantes à entrada da praia, mais sofisticados. Nem sempre foi assim. Há mais de 20 anos, quando ali se fazia campismo selvagem e se ia a pé da Trafaria, era frequentada por jovens e gente menos endinheirada, os chamados “tesos”.
Portugal vivia o tempo do escudo e apanhar um barco em Lisboa para a Trafaria significava uma forma acessível de ir às praias da Costa. Este era o destino escolhido por muitos jovens, estudantes, também famílias, algumas das quais moravam próximo e outras acampavam nos terrenos em redor, agora ocupados pelo parque de estacionamento. Os terrenos foram comprados pela Urbanização Praia do Sol que, nos finais dos anos 90 do século passado, começou a exigir um pagamento à entrada, o que gerou muita polémica e contestação. A empresa foi multada pela cobrança de “parque de estacionamento clandestino”. Alteraram as condições do parque, obtiveram as autorizações e a cobrança tornou-se efetiva desde 2002.
Atualmente, e em qualquer altura do ano, são cobrados quatro euros por dia sempre que o tempo de estacionamento ultrapasse uma hora e 45 minutos. Desde o início que a empresa cobrou mais do que outros parques locais (começou por ser 400 escudos), o que acabou por selecionar não só os banhistas, como também o tipo de bares-restaurantes de São João. Hoje são sete, com estética e qualidade superiores às da generalidade dos bares de toda a Costa.
Jorge Silvestre, coordenador da equipa de nadadores-salvadores nas praias de São João, confirma a alteração do perfil dos banhistas. Recorre às memórias de infância para fazer a comparação, ele que se intitula “filho do mar”. Nasceu na Trafaria há 43 anos, é nadador-salvador há 17. “Fazia-se aqui campismo selvagem, o que agora não é permitido. As pessoas vinham a pé desde o porto da Trafaria [15 a 20 minutos], era uma praia completamente diferente, não tem nada a ver. Só pelo facto de o estacionamento ser pago, limita a frequência. As pessoas deixam o carro lá fora ou pagam quatro euros e se tiverem de sair voltam a pagar. Agora, é mais procurado pelas pessoas da linha [Cascais] e pela elite de Lisboa, por ser mais tranquila e restrita. Entra quem tem dinheiro.”
Perfil dos banhistas por zona
O nadador faz até um mapa do areal de São João da Caparica consoante os seus frequentadores: “zona 1, pontas da praia e que tem ondas (bares Lorosae e Clássico), é pessoal do desporto, do crossfit, do fitness e do surf; zona 2 (Sunset e Kontiki) são famílias; na zona 3 (Bicho d”Água e Leblon) encontram-se as famílias da elite. Nas espreguiçadeiras e em frente aos bares-restaurantes Clássico e Pé Nu veem-se, também, algumas figuras do jet set, artistas emergentes, já houve mais futebolistas”, conta Jorge Silvestre.
Em setembro, dez nadadores-salvadores fazem a segurança das praias em toda a extensão de São João da Caparica (eram 14 em julho e agosto). Mas o primeiro bar concessionado das praias da Costa da Caparica fica entre São João e a Cova do Vapor. É o Albatroz, propriedade de Fernando Sobral, 62 anos, que abriu o espaço há 35 anos. Assistiu às alterações da frequência, o que considera normal: “As coisas vão crescendo com naturalidade e estão a crescer bem na praia. Onde não estão a crescer é à volta, ninguém quer que esta zona progrida”, critica. Queixa-se de serem muitas as exigências da concessão e serem poucas as contrapartidas.
Fernando e o irmão eram nadadores-salvadores e, assegura, aquelas praias sempre tiveram muita procura. “Onde agora é o estacionamento eram parques de campismo selvagem, com milhares de pessoas”, recorda. Quanto ao poder económico desses veraneantes, defende que a diferença tem, sobretudo que ver com as condições socioeconómicas do país. Argumenta: “No tempo dos meus pais vivia-se muito mal, agora vive-se muito melhor. E é preferível pagar quatro euros do que andar às voltas para arrumar o carro.” Em contrapartida, os utentes têm praias limpas e estão “numa zona completamente selvagem e integrada na natureza”.
Zona selvagem e que fazem questão de proteger, com muitos avisos para não danificar as dunas. Desde o estacionamento ao areal, o bar-restaurante Leblon tem aguarelas a alertar para a proteção das dunas. O Leblon será, talvez, o espaço mais sofisticado de toda a correnteza de bares e muito escolhido para casamentos.
Ricardo Jorge, 48 anos, é o responsável do Leblon desde o primeiro dia, há 18 anos. O restaurante-bar surgiu depois do estacionamento pago e já teve outros dois nomes, consoante a gerência. E sempre tiveram uma clientela selecionada: “Famílias de Cascais, e também de Lisboa, com poder de compra, o que não quer dizer que sejamos um restaurante caro, mas tentamos manter a qualidade.” O preço de uma refeição completa fica entre 20 e 25 euros por pessoa. Fora da época balnear há cozido à portuguesa ao domingo: 11,50 euros por pessoa, sem bebidas.
Voltando à praia, encontram-se gerações de famílias nas espreguiçadeiras e no areal. Falam com os jornalistas mas recusam fotos, como Teresa, de 68 anos, enfermeira reformada. Reside em França e tem casa em Cascais, onde passa o verão, mas diz que as temperaturas da linha não favorecem a ida a banhos, sobretudo neste ano. Ela e o marido pegam no carro e vão até São João. “Frequento sempre esta praia quando venho para a Costa da Caparica. Não se compara o tempo que se demora no trânsito e é muito tranquila. É mais caro, mas tem sempre sombra para os carros e há espaço na areia. Nas praias ao lado é tudo ao molho.”
Quem beneficia do mau tempo em Cascais é a amiga, Maria do Carmo, que vive na Estrela, em Lisboa, a quem dão boleia. Tem 63 anos, reformou-se do trabalho administrativo e não tem dúvidas de que São João é a melhor praia da Costa. “É ótima. Só vou para as outras praias quando venho com amigas pirosas que não querem vir para aqui.”
Avós, filhos e netos
Mais um grupo de banhistas, este composto por avó, filha (Filipa Ramos) e neta. Moram na Avenida de Roma, em Lisboa, e estão a aproveitar os últimos dias de férias. “É uma praia muito simpática, calma, e o acesso também é melhor. Paga-se pelo estacionamento mas compensa, não tem tanta afluência. O preço seleciona um pouco, o que também nos agrada”, justifica Isabel Graça, a avó. Tem 65 anos, é supervisora de hotéis, atesta a qualidade dos bares da praia, onde vão para uma bebida ou um gelado. Trazem a comida de casa, o que “acaba por ser mais prático quando estamos com uma criança”.
Em frente, nas zonas com sombra, Ana Pessanha, professora e pintora, está com as filhas, ambas designers e a viver no estrangeiro. Um dia de sol para saborear o verão e recordar. “Venho a esta praia desde sempre, há mais de 30 anos, elas ainda não eram nascidas. Tínhamos aqui um apartamento. Gosto muito desta zona e há outro fator: tenho uma grande ligação aos donos do Kontiki [a quem aluga o toldo e as espreguiçadeiras ].”
É o restaurante mais antigo de São João da Caparica, propriedade da família Cerqueira. Conceição é a matriarca, tem 78 anos e é a cozinheira do Kontiki. Abriu o restaurante com o filho há 23 anos, depois de uma vida de emigrante em França. “Regressámos a Portugal porque o meu marido tinha uma doença grave e quis vir. Depois ele faleceu e agarrámo-nos à vida”, explica. Abriram o restaurante no dia 1 de agosto, tinha ela 52 anos e o filho 29.
Durante a época balnear, as portas estão sempre abertas. Nos meses restantes, abrem consoante a meteorologia e sempre aos fins de semana. Têm cozido à portuguesa aos domingos, o que parece ser uma característica dos restaurantes de São João.
“A nossa clientela não está a olhar para o tostão, desde logo porque tem de pagar o estacionamento. Nós também pagamos, toda a gente paga, até as pessoas com deficiência”, protesta. Mas os clientes são fiéis, sobretudo pelo peixe grelhado, que vem diretamente da lota. O que não há é… sardinhas: “Não temos na lista porque os clientes queixam-se do cheiro.”
Manuel Ramos, 62 anos, há 40 a percorrer o areal de São João da Caparica, preferia o tempo de antigamente. As pessoas compravam-lhe mais gelados, batata frita e bolacha americana. “Há uma grande mudança desde que comecei a venda. O pagamento do estacionamento restringe muito a frequência, antigamente eram pessoas daqui e de outros sítios mas com menos dinheiro e compravam aos vendedores. Agora vêm de Lisboa e de Cascais com dinheiro e vão aos bares. O que me vale são as bolas-de-berlim desde que se tornaram moda!”.