“Torre da Marinha” por Manuel Aleixo

Se existisse um paralelo…

 

(Algumas das minhas memórias da Torre da Marinha)

 

Uma vila pequena onde se salientavam duas grandes ruas paralelas, que se uniam por uma travessa que existia no topo dessas ruas com o chafariz e igualmente no extremo oposto havia a ligação das mesmas junto à Estrada Nacional 10-A. Tanta gente que era operária na fábrica da Lã e em outras fabricas no concelho do Seixal.

Cresci aqui desde os 9 dias de vida até à ida para a tropa, foram mais de 20 anos.

As memórias que a seguir vão ler, são um resumo breve do que vivi, mas talvez as coisas que melhor a memória guardou.

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O Independente talvez tenha sido a entidade mais agregadora das suas gentes e foi com enorme esforço publico que a sua sede foi erigida, primeiro só com utilização do térreo edifício e muito mais tarde quando as suas gentes puderam, se inaugurou o 1º andar amplo, propício a bailes e outras manifestações.

Indico o site interessante da história desta colectividade para leitura mais atenta:

http://www.ifctorrense.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=61&Itemid=103

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Como em todos as aldeias havia as figuras pitorescas da época, recordo sem qualquer critério que não seja o da própria memória o Valentim Cardoso, Anastácio Sousa, Darwin, Sequeira, Guilherme Oliveira, Nené e a extensa família, professor Leopoldo, Américo do Centro, José Alfaiate, Amílcar (Mita), Patalota, Mariano da Paquita, Alfredo Caracol, etc.

Estes eram os mais apresentáveis.

Depois as figuras de estilo entre os quais o Alexandre Fressura, o Floresta, o Zé da Cruz, o Jorge Boal, o Bicas, o Gabriel do Julio e outros, todos com histórias que não devem ser aqui contadas…

Três barbeiros, muitas tabernas e algumas mercearias e lugares de fruta faziam o lugar.

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Em meados de junho havia a festa local, com todos a envolvência habitual de Bandas a tocar, bailes, barracas de comes e bebes, carroceis, poço da morte, barracas de tiro e vida fácil, sem esquecer as cavalhadas que eram guardadas para o último dia. Sobre este tema havia algum alvoroço, quer pelo enigma dos prémios em disputa quer pela aventura de, no cimo de uma bicicleta com ou sem motor e até cavalgando machos e burros, havia de tudo para delírio dos mais pequenos, mas igualmente dos adultos. Os prémios eram da maior variedade, desde coelhos, pombos, galinhas, eu sei lá, havia também os prémios que vinham só escritos num papel, pois havia o perigo de se quebrarem naquela caçada.

As cavalhadas funcionavam do seguinte modo, os interessados inscreviam-se tendo direito a várias entradas, isto é, tentativas. O caixote do prémio era içado, entre dois mastros opostos na rua principal e cada concorrente fazia a sua tentativa de, com uma pequena seta na mão a enfiar numa argola lá no alto, que uma vez concretizada, fazia abrir o caixote e o premio para o valente artista. Quando o concorrente não conseguia sacar o prémio, dava a vez ao seguinte. Quando a missão tinha êxito, a comissão de festas fazia descer o caixote e lá punha novo prémio sempre às escondidas dos mirones.

O fiscal da comissão de festas estava atento ás tentativas da “mão do Maradona” (quem havia de dizer que estes subterfúgios estavam em prática muito antes dele ludibriar a Inglaterra). Já imaginaram um concorrente de bicicleta a motor ou de burro conseguir o equilíbrio suficiente para o pequeno êxito. Passava-se uma tarde inteira naquela brincadeira.

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Enquanto andava na escola do Sr. Leopoldo, que era um reformado por problemas políticos, tinha oportunidade de assistir à lição dos mais adiantadas e naturalmente dos outros. A aula tinha caracter particular, era uma forma de prender o pessoal pois os familiares estavam trabalhando, era comum a todas as classes e dada num enorme quintal cheio de flores. A mesa enorme tinha exposta a todo o comprimento uma vara que o Leopoldo fazia chegar às orelhas dos mais burros ou malcomportados. Toda a malta tinha pavor da sua fúria. Mas durante a tarde era a vez do romance radiofónico da Coxinha do Tide cujo nome oficial era “A força do destino”. Tudo parava! As mulheres das redondezas e seguramente as outras ficavam especadas a ouvir os rádios que em som elevado, davam lugar à comoção própria de quem não tinha outro meio de cultura pois à época não havia televisão e muito menos teatro. Os interpretes das novelas eram as melhores vozes da rádio de então. O cinema era só no Seixal e mais tarde também na Amora e Paio Pires. Estavam longe.

Mais tarde houve outra novela radiofónica de nome “A paixão de Laura Quintero”, igualmente apreciada.

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Perto daquela casa do Leopoldo, havia frondosas arvores de sombra. Numa dessas arvores o Alexandre Fressura pendurava animais vários, para os desmanchar provavelmente por encomenda dos seus criadores. Depois do golpe fatal que acabava com a vida do bicho, punha-lhe debaixo um enorme alguidar para aproveitar o sangue, começando logo a seguir o esventramento do animal com as vísceras desinteressantes a serem descartada para uma cova previamente feita. Começava então o corte das partes interessantes e onde tudo era aproveitado. Claro que esta tarefa executada na rua, a céu aberto, sem qualquer noção de higiene, sobretudo pelos cheiros desagradáveis, para gaudio do mosquedo, provocava naturalmente repúdio na vizinhança de nada servindo as desculpas do Alexandre de que era só mais aquela vez. Mudava de arvore, mudava de cova, mas as moscas eram as mesmas e o incomodo era igual.

Eu aproveitava o intervalo das aulas para ver o trabalho dele, enquanto outros miúdos aproveitavam para desgastar as energias, jogando “à rolha”, ao “toca-e-foge” e ao “jogo do eixo” que envolvia saltos por equipas e começava com expressões curiosas de “primeira caganeira”, “segunda catacumba”, “terceira de qualquer maneira” e seguintes.

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O referido Gabriel do Julio de quem não se pode aqui descrever muito do seu pensar era um óptimo contador de histórias, aquilo a que hoje se chamaria um bom malandro. Capaz de pôr nomes adequados a cada situação que lhe passava pela frente, tinha a particular ideia de remeter para o Jorge Boal todos os problemas que lhe punham.

Vais por ali ou acolá e encontras o ti Jorge Boal a quem pões o problema, era a sua charada preferida.

Ora o bom do Jorge Boal tinha ao que se sabe uma carroça e fazia fretes, mas o macho que a puxava era assim que a modos um pouco avantajado. Quando os novatos se apercebiam da marosca lá deixavam o ti Jorge a sorrir, perguntando se fôra o Gabriel que o mandara ir ter com ele…

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Outro tema preferido das boatarias eram as pretendentes a algum rapaz ou o inverso com dois galos para um mesmo poleiro.

Houve um romance a três que enfeitiçou a Torre. O Amílcar (Mita) era um rapaz bem parecido e por isso muito disputado entre duas moças do burgo. Acho que ele ia alternando as suas conquistas sem se decidir por qualquer e as coisas já não davam para entreter pois estavam na idade própria de casar. As opiniões dividiam-se achando uns que ele ia melhor com esta, havendo outros que se opunham sublinhando predicados à outra, tudo isto na cabeça do Mita devia fazer ainda mais duvidas. Lá se decidiu o rapaz com quem bem entendeu, mas as apostas perduraram muito depois da decisão dele.

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Uma das primeiras memórias fica para última menção.

Quando havia algum teatro e variedades ensaiadas na velha sede do Independente, ainda num tempo em que as instalações eram numa pequena verbena interior junto da venda da Maria Mulata. Numa das noites a Abrilete cantava uma languida canção que evocava tempos melhores que se anunciavam, mas nunca vieram:

– O mundo seria belo, o mundo seria belo, se existisse um paralelo!

 

 

Escrito de Agosto a novembro de 2020

mfaleixo

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