Uma Mulher Inesquecível
A Ana Ribeiro
Recordar é como caminhar por uma vereda desconhecida. Ora somos surpreendidos por floridos campos da Primavera ora por rudes escarpas de uma montanha. É uma ambiguidade constante, a incerteza a cada passo.
Penso que as recordações me surgem vindas de labirínticas sinuosidades localizadas entre os sentidos e a alma que tanto me fazem repousar o olhar sobre a beleza do tempo sucessivo como pisar a fria pedra do desespero da saudade.
Diz-se que a memória é o espelho onde se observam os ausentes. Porém, é com pavor que eu reparo que a minha mente começa a preencher-se de constantes intermitências e de vazios sombrios. A sequência das minhas imprecisas madrugadas vai, aos poucos, empalidecendo a recordação do meu ideal que, por sua vez, se mistura, num vago conflito, com as trevas do esquecimento.
Um dia, ela partiu numa imprevisível viagem. Foi para longe, atraída pelo céu claro, para as luminosas paisagens da eternidade, e nunca mais regressou.
O espanto, aliado a uma dor súbita abalou-me. Como alucinado clamei por ela ao mar e às nuvens tentando saber se a tinham visto ou se sabiam onde se encontrava. Mas as nuvens e o mar nunca me responderam. Toda a estrutura em que assentava a minha existência ruiu e eu mergulhei num abismo profundo, sem luz e vazio.
No tempo insusceptível dessa comoção continuei a evocá-la em toda a sua dimensão terrena, mas fui criando dela uma imagem especial, diria mesmo, espiritual. Tornei-a na mais perfeita e bela das mulheres, tão bela que enrubescia o pôr-do-sol. Não aquela beleza terrível, fria e digna das estátuas, não a beleza que suscita paixões violentas, mas uma espécie de luminescência, de lábios quentes abertos em permanentes sorrisos, num rosto emoldurado por olhos castanhos e ternos.
Nessa divagação (ou será devaneio?) vão-me surgindo, como num cortejo processional da vida, as imagens, os risos, as paisagens, a amizade e o amor, a alegria pura das crianças, os carinhos, as músicas e o sol, esse seu luminoso e acariciante sol do Sul – ela não concebia um mundo sem alma e sem pôr-do-sol, de tal forma que até a própria noite vinha de mansinho buscar o brilho do sol esquecido no seu cabelo.
A Natureza e ela eram percorridas pela mesma seiva. Havia uma simbiose entre a sua humanidade e o mundo natural, como se cada uma dependesse da energia da outra. A respiração das ervas no prado tinha a frescura do hálito perfumado dos seus beijos leves. Os sons discretos do bosque ou o marulhar das ondas nas areias brancas de uma praia lembravam sussurros e murmúrios semelhantes aos acalantos que dedicava às flores. E é impossível descrever o modo como delas cuidava. Penso que ela era a sacerdotisa de uma religião própria, cujo deus se incorporava nas pétalas das flores e o altar onde praticava a liturgia era formado pelos inúmeros vasos onde as plantava. Nesses momentos, todo o seu ser se transformava de um modo notável. Invadia-a uma alegria puramente matinal e os seus olhos enchiam-se de uma luz maternal até atingir um êxtase contemplativo e uma paz interior que a transportavam para uma dimensão que, seguramente, não era deste mundo.
Ainda na juventude, ela manifestou a sua preocupação ao escolher a área das Ciências Sociais para a sua formação académica. No seu país, e particularmente na sua cidade, as desigualdades sociais são evidentes e excessivas. A pobreza, a fome e o abandono das crianças que pululam pelas ruas em total indigência, eram a matéria-prima da sua actividade e ela procurava, dentro das suas possibilidades, dar-lhes o máximo de conforto e dignidade.
Essas misérias eram um insulto, uma vergonha, uma mancha na sociedade de opróbrio e ela angustiava-se perante a desumanidade absoluta e revoltava-se contra as injustiças sempre impunes.
A ganância absurda, a destruição da natureza, a sede do poder e a exploração exercida sobre o povo humilde levaram-na sempre a opor-se à corrente dominante e a lutar por um mundo mais harmonioso e fraterno. A sua consciência social, ou seja a consciência do impossível, cresceu assim, juntamente com as suas opções ideológicas.
Muitas foram as lutas que travou para inverter ou minorar essa situação e em muitas saiu derrotada, mas tentava mostrar, à sua maneira, qual o lado mais iluminado em que acreditava e que desejava para todos. Com esse objectivo reproduzia, com convicção, as palavras de um grande amigo e lutador pela causa dos pobres. Dizia ele: ‘os pobres têm de saber que são pobres não porque Deus quer, mas porque as circunstâncias os fazem pobres e têm de sair dessa pobreza’.
Ao rejeitar alguns dos valores que as sociedades impõem como absolutos, ela procurou manter o livre arbítrio em todas as suas acções, mesmo quando afrontava normas estabelecidas ou desobedecia às ordens recebidas. Ela era um espírito livre, determinado, luminoso.
A amizade transbordava do seu peito e ela desfraldava-a como um vitorioso estandarte ao vento. O nosso próprio amor, nascido do fogo da paixão, tinha-se sublimado e evoluído para um estádio mais elevado, ao qual, com alegria e convicção, ela chamava de amizade transcendente.
O humor leve e o riso, esse reflexo resplandecente da alma, quantas vezes seguido de uma gargalhada cristalina, eram os meios que ela usava para uma convivência sincera. A sua alegria contagiante era por todos admirada, pois um sorriso permanente iluminava-lhe o rosto e ela ficava bela como um sonho.
As mulheres invejavam-na fraternalmente, reconhecendo-lhe a vaidade campestre, simples e natural, já os homens adoptavam-na ao primeiro olhar, pondo-se do seu lado.
Para pessoas, como ela, cujos pensamentos flexíveis têm um certo saber dançante e que acompanham o ritmo do sol, cada dia que despontava era como uma perpétua manhã. Era a renovação constante da vida, a exaltação à alegria e um hino à amizade.
Ela não era um mundo nem o complemento de um mundo, era a camarada e a companheira das pessoas, todas tão imortais e insondáveis como ela própria.
Porém, em mim, que a amava na igualdade, a sua ausência foi-se agigantando ao longo das minhas viagens pela noite incessante e eu mergulhei numa espantosa solidão que, penso, só é possível na juventude quando temos à nossa frente todos os sonhos ou na velhice com todas as recordações atrás. A passagem da saudade à solidão é um movimento brusco, quase imperceptível e com efeitos devastadores para quem o sofre.
De modo a suavizar a sua não-presença, forcei-me a aceitar que o seu afastamento da minha vida era a expressão de um afecto miserável e não o tormento cruel que tanto me afligia. Imperceptivelmente, acabei por me vestir com ela como se fosse um manto e aprendi a recolher nas minhas mãos o seu silêncio. Para preencher o vazio que se cavou em mim e tentando convencer-me de que o verdadeiro inferno, afinal, só se traduz na ausência daqueles que amamos, tornei-me construtor de passados.
Dominado por uma loucura crescente, excedi a minha condição humana e, sem pudor, usurpei o lugar dos deuses. Por ela, em delírio, criei belas paisagens com o que sentia; fiz deslizar rios de águas serenas que nunca existiram; ergui montanhas e bosques; aventurei-me em lugares longínquos; compus sinfonias com o murmúrio das águas que se precipitavam em cascatas vitoriosas ou que deslizavam mansas sobre pedras musgadas; iluminei-lhe o olhar com a luz das estrelas do fantástico céu nocturno africano; construí uma casa na montanha onde se chegava pelo arco-íris; e, consciente da sua ligação à Natureza, impregnei-a com o odor das flores silvestres e dos frutos do seu mundo tropical.
Na insaciável busca da sua alma através dos delicados reflexos que ela deixou em mim, que, ao princípio, eram o ténue rasto do seu sorriso ou de uma palavra e, no fim, esplendores diversos e crescentes da razão, da imaginação e do bem, convenci-me da minha própria imortalidade, pois tive a certeza de que a saudade que dela sinto é eterna.
Mas, afinal, tudo eram sonhos e devaneios que ela, de um modo apaixonado e cúmplice, compartilhava comigo.
Embora vivesse declaradamente na realidade, já que o mundo do espírito não a seduzia, também se alimentava da seiva generosa da utopia que lhe irrigava a alma e até a levava, por vezes, a afirmar que nenhum indivíduo nem nenhuma sociedade podem viver sem utopia. Mas, estranhamente, as obsessões amavam o tumulto dos seus pensamentos para onde eram atraídas e onde se digladiavam as várias paixões.
Como qualquer ser sensível, ela também era propensa ao devaneio, porém, o que mais a atraía e fascinava era a simplicidade das coisas naturais. Todos os elementos ligados directamente à terra compunham e preenchiam a sua existência. A densidade da floresta, o pulsar das fontes, o deslizar dos rios, a quietude do lugar, o grande silêncio das catedrais das montanhas, a imensidão do mar e a beleza das flores levavam-na, invariavelmente, a procurar penetrar na essência da brisa que soprava pela folhagem.
Eu e ela, acalentámos o desejo de passar o crepúsculo das nossas vidas no ambiente bucólico de uma montanha. Lá, onde o ar mudava a cor das coisas, onde se respirava a vida, como se fosse um murmúrio, estava a nossa casa. Não era uma casa verdadeira era, como direi?, uma casa idealizada. Da varanda via-se um pequeno arco-íris junto de uma cascata cercada de avencas, e a sua divisão principal era a sala de estar ou o ‘cantinho da amizade’.
Nessa altura, já não era a voluntariosa busca do impossível que procurámos na juventude, era simplesmente a parcela da sempre fugidia felicidade, da qual, nós, na nossa intensa convivência e imensa generosidade, nos julgávamos merecedores.
Naquela terra de árvores adormecidas e cintilantes, de amanheceres esplendorosos, de mar sem fim e de praias sombreadas pelos coqueiros, de risos juvenis e de corpos esbeltos, nessa terra quente que nos pariu eternos amantes, de súbito, o céu tomou a cor da noite. Uma violenta tempestade rugiu e abateu-se sobre nós destruindo os nossos desejos da felicidade em construção.
A devastação foi imensa e nós fomos expulsos do sonho, para sempre.
Passaram-se dez anos, desde que a minha amiga, companheira e amante, um ser a todos os títulos notável e inesquecível, deixou o nosso convívio.
Mas o tempo não existe, é apenas um olhar na recordação de uma vibração. E eu sinto-a ainda como se ela fosse uma brisa suave que estremeceu as folhas da árvore da minha vida na frescura vibrante das manhãs.
Como uma modesta homenagem, fruto de uma enorme e persistente saudade, que se instalou em mim e que me faz viajar pelo espaço e pelo tempo infinitos, na procura desesperada do seu sorriso e das carícias das suas mãos que esvoaçam na imensidão como duas pombas brancas, escrevi-lhe estas palavras sentidas.
Reinaldo Ribeiro
15ABR2017
É verdade, companheiro Reinaldo!
Um grande e sentido abraço!
Amigo e companheiro,nem sei como reagir depois de ler esta mensagem para a humanidade. Só há uma palavra que a define:AMOR. A tua bondade, os sonhos que sempre te acompanham, a utopia que não pode nunca morrer faz de ti uma pessoa especial. Grande abraço.