Vidas…
O A.F. nasceu e cresceu na margem esquerda do Guadiana. Alentejano proprietário de terras, montes, montados de azinho e sobro, porcos pretos, toiros bravos… Senhor de um vasto mundo rural que herdou de seus pais e avós.
A M.F. nasceu na margem direita do Tejo, quando este já mistura as suas águas com as do grande atlântico. Viveu na “Linha”, aí cresceu, estudou, foi pintora e ceramista. Tinha a sua formação artística e uma visão do mundo mais virada para a partilha, para o bem estar daqueles que tinham direito a uma vida humana mais digna.
Conheceram-se na juventude, quando o A.F. ia a “banhos” para as praias de Cascais, fugindo aos verões tórridos das terras da raia. Namoraram, casaram e fixaram-se na herdade do A.F.. No “Monte” a M.F. aprendeu a viver num lugar que não conhecia, longe do mar, mas tão perto da Natureza. Apercebeu-se de pronto das carências, da forma de viver dos homens e mulheres do campo alentejano, que trabalhavam na casa agrícola do casal e necessitavam, de pequenas coisas, que seriam muito importantes para eles e para os seus filhos. Falou com o seu marido e ele, homem bom, compreendeu e apoiou os seus anseios. Tomou então a iniciativa de criar no “Monte” uma loja onde os seus empregados pudessem comprar, mais baratos, os produtos produzidos na herdade. Ao lado instalou também uma pequena creche onde,os filhos desta gente trabalhadora, pudessem ficar, durante o dia, enquanto os seus pais estavam ocupados nos duros trabalhos do campo.
À partida tudo isto era normal num país normal. Mas – há sempre um mas – vivíamos numa ditadura. Os informadores da PIDE acharam que algo de anormal se estava a passar naquela herdade alentejana, que aos seus olhos não encaixava nas ideias e na politica que nessa altura vigorava em Portugal. A informação depressa chegou a Lisboa e, a M.F., grávida nessa altura, foi detida pela PIDE… Só por tentar ajudar os pobres desta terra a terem uma vida melhor, mais digna, menos sofredora.
Passaram-se anos e, no Verão quente de 1975, uma nova ditadura do PREC, orquestrada por um partido, ocupou o “Monte” e a herdade do A.F. e da M.F…. Ficaram sem as suas terras e tiveram que abandonar o “Monte” onde viviam. O que terão pensado o A.F. e a M.F. quando isto aconteceu? Já Luís Sttau Monteiro, no seu livro «Todos os anos pela Primavera», fala das mudanças e dos comportamentos dos homens quando têm o poder.
Saíram do seu Alentejo, dos campos de azinho e sobro, da planície imensa, onde ensaiaram um projecto social – condenado pelo Estado Novo – e foram depois vítimas de outro projecto, executado por alguém que não tinha o mandato do voto dos portugueses para o fazer. Instalaram-se nas serranias da Estrela, montaram um negócio de artesanato e venda de produtos alimentares regionais. Correram feiras gastronómicas e de artesanato em Portugal e em Espanha. A M.F. vendia as suas cerâmicas e o A.F. os queijos, os enchidos, os presuntos e os vinhos portugueses. Conviviam com as gentes e tentavam esquecer uma pátria que lhes foi madrasta.
No momento actual oxalá não comecem a surgir muitos, mas muitos, sem emprego, sem condições económicas para viverem, à procura do pão para o dia a dia, e que não surjam novas ditaduras, novos censores, para que esta crónica e este jornal possam chegar aos seus leitores.
António José Zuzarte, Costa da Caparica, 7 de Julho de 2012.
Companheiro
Bela e preocupante crónica. Os homens, quando detêm o poder, deixam a sua condição humana resvalar para as margens da bestialidade e tornam-se monstros. Nos tempos actuais há muitos monstros daqueles, só que são como lobos vestidos com a pele dos carneiros…
Reinaldo