O Roubo dos Livros

A Herberto Helder

Um adolescente, tímido, e com uns livros na mão, acercou-se de uma carrinha cinzenta de chapa ondulada e estacionada junto da fonte e em frente à escola da aldeia, onde tinha feito a 4ª classe poucos anos antes.

Cerca de dez pessoas formavam uma fila e, todas elas, tal como ele, seguravam livros. Era um ritual mensal que muitos dos habitantes do lugar aguardavam sempre com ansiedade, como se aquela carrinha os levasse para outro mundo, tão diferente daquele onde viviam.

A fila diminuía devagar, mas, naquela aldeia, o tempo tinha ainda a suavidade do deslizar das águas do regato, alimentava-se de vida e era visto como uma dádiva, não como a prisão em que o relógio o iria transformar. Ele sabia, de antemão, quais os livros que pretendia levantar e calmamente aguardava que chegasse a sua vez.

Fizeram-lhe sinal para entrar. As laterais da carrinha continham estantes repletas de livros separadas por um corredor estreito. O funcionário era um homem educado, talvez de quarenta anos de idade, que lhe perguntou qual era o seu nome. Procurou a sua ficha numa caixa e, depois de lê-la, quis saber se ele vinha devolver os livros levantados no mês anterior e se estes lhe tinham agradado. A sua resposta foi pronta: – Todos os livros que levei eram excelentes, mas do que mais gostei foi do D. Quixote, de Cervantes. Fiquei, até, com a estranha sensação de que há ali algo mais do que uma história da cavalaria contada com humor. Um leve sorriso esboçou-se no rosto do homem que, demonstrando satisfação, disse: – Muito bem, penso que a tua observação está correcta sobre o D. Quixote, mas tens alguma ideia do que pretendes levar desta vez? A resposta do rapaz foi pronta: – Tenho, sim senhor. Se houver aqui, gostaria de levar um livro chamado Guerra e Paz, do escritor russo Leon Tolstoi. Disseram-me que é um livro volumoso, por isso só vou levar esse. No olhar do funcionário acendeu-se um brilho de surpresa e de admiração, quando disse: – Essa é uma óptima escolha, pois Tolstoi descreve de maneira ímpar as guerras napoleónicas na Rússia. Realmente, temos aqui essa obra, não num único volume, mas em três, e todos eles são volumosos. Quando os acabares de ler gostaria de saber a tua opinião. – Assim farei, senhor!

Porém, a vida tem os seus imponderáveis e a devolução daqueles livros ficaria adiada para sempre.

Seguindo a lei natural da vida, o rapaz saiu da sua aldeia e deslocou-se para a cidade grande, ao encontro do futuro, onde começaria a sua vida de trabalho. Na mala, além de algumas roupas, esperanças e sonhos, levava consigo os três volumes do Guerra e Paz, ainda sem terem sido lidos.

A partir de então, os horizontes que os seus olhos, sucessivamente, iam contemplando passaram a ter as cores cálidas e longínquas de África. Muitas foram as paisagens para onde se deslocou, todas tão distantes da sua aldeia e que o atraíam como se fossem um íman. Passaram-se anos em que tudo era novidade. Tudo, talvez não, porque a sua mala continuava a conter as roupas, os sonhos e esperanças, além dos três volumes do Guerra e Paz.

Fez-se homem, casou, teve um filho e, mais uma vez, seguiu o apelo indeclinável de África. Aí, numa noite cálida, começou, finalmente, a leitura dos livros que tantos anos o acompanharam. Recorda-se de que, durante dias e noites, como se estivesse possuído pelo espírito de Tolstoi, não descansou enquanto não terminou a leitura dos três volumes do Guerra e Paz. No fim, mais uma vez, envergonhou-se ao lembrar-se de que aqueles livros não eram seus, pois tinha ficado com eles de uma forma abusiva, como se tivessem sido roubados.

Muitos anos mais tarde, num bar em Lisboa, ele conversava com o poeta Herberto Helder, quando este lhe disse que tinha trabalhado nas Bibliotecas Itinerantes da Calouste Gulbenkian e que ele, com o seu amigo Luiz Pacheco, faziam a distribuição de livros na sua aldeia, na época correspondente à sua juventude.

Ao ouvir isto, o rapaz tímido – agora com cerca de cinquenta anos – ruborizou como uma criança que é apanhada a mentir. Balbuciante e envergonhado, falou para o amigo: – Herberto, desculpe, mas quero confessar-lhe, aqui e agora, que eu lhe roubei três livros, mas que estou disposto a devolvê-los, porque ainda estão em meu poder! – e contou-lhe o episódio do Guerra e Paz.

A sonora gargalhada que o poeta soltou fez com que os restantes clientes do bar se virassem na sua direcção, enquanto este, risonho, dizia: – Você andou mais de trinta anos com esse peso na consciência, apenas porque não sabia que a Gulbenkian (e todos nós) ficávamos satisfeitos quando alguém não devolvia os livros levantados. O princípio era simples: – Quem fica com um livro que não lhe pertence, jamais poderá ser considerado um ladrão, mas sim alguém que tem amor pela literatura!

Reinaldo Ribeiro

29SET2019

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