A Senhora do Croché
Conta a bonita idade de 69 anos, a face é morena e livre de sulcos profundos próprios da idade, um chapéu de pano protege-a dos raios solares, que na Rua dos Pescadores, onde tem uma banca montada, podem ser inclementes nos meses de verão.
Quase passa despercebida, não fora o conteúdo que se encontra mimosamente exposto, numa comprida mesa, coberta com um pano branco, composto por peças trabalhadas em renda de várias cores e que são uma delicia para quem as olha, são verdadeiras obras de arte, conseguidas com apenas linhas, agulha e muita criatividade.
Quem se detém a apreciar peça a peça, com ou sem intenção de comprar, não imagina, que aquela simpática senhora, sentada por detrás da banca, tem uma deficiência motora de 80%, caracterizada desde que viu a luz do dia por o chamado pé boto.
Num domingo de Abril, de temperatura amena, cruzei-me com ela, e os meus olhos detiveram-se em primeiro lugar, na originalidade dos trabalhos que se encontram expostos, mas algo mais me fez entabular conversa com ela, talvez fosse o seu olhar sereno, a calma com que me ia explicando com carinho como tinha nascido este ou aquele objeto, dei por mim a querer saber como tinha chegado a este estágio da sua vida onde fazia da rua o seu local de trabalho.
E a história que fui descobrindo, é a de uma mulher, determinada, forte e lutadora com uma filosofia de vida, assente no facto de que deve ser encarada como uma dádiva, mesmo que uma qualquer parte do corpo, por motivos que nem pretende conhecer seja diferente da maioria das pessoas que conhece.
A única vez que se lembra de se ter sentido inferiorizada em relação à sua deficiência, foi quando frequentava a escola primária e os colegas a olhavam de través, dizendo-lhe coisas que a magoavam, mas depressa percebeu que não fazia sentido lamentar-se. O melhor mesmo era aceitar a sua condição física que sabia iria ser permanente e dentro das suas limitações construir um futuro em que a felicidade predominasse.
Nasceu no Porto, no seio de uma família composta por mais 2 irmãos. O pai era serralheiro, a mãe, como quase todas as mulheres da época, encarregava-se das tarefas domésticas, da educação dos filhos e para completar o orçamento, alugava quartos, também como todas as crianças, ficou-se pela 4ª classe, seguindo-se o primeiro emprego como aprendiz de costureira.
Na idade em que homens e mulheres deixam de ser meninos e se começam a olhar com sentimentos de atração física e emocional, apaixonou-se por um hóspede que vivia em casa da mãe, um rapaz que a olhou com amor, sem se deter na sua incapacidade, vendo antes nela uma companheira que o completava e que certamente o acompanharia nos melhores e piores momentos, num percurso de vida que por muito planeado é cheio de surpresas.
Casaram, tiverem 2 filhos, ele era tipógrafo e ela juntava os seus afazeres domésticos com o emprego e nos momentos livres dedicava-se a fazer trabalhos em renda, que funcionavam como terapia de relaxamento, sempre encarando o dia a dia como mais um a vencer. Sem que utopias, inquietações ou sonhos delirantes lhe tirassem o sono, o seu único sonho e que sempre a acompanhou era possuir casa própria.
Veio viver com a sua família para Pera, uma freguesia da Caparica. Empregou-se num stand de automóveis, onde trabalhou 20 anos, sem que o pé boto fosse um entrave, nem lhe consumisse o ego ou a autoestima, considerando-se antes uma afortunada entre os que vivem em condições físicas ou emocionais mais condicionantes que a sua, a única coisa que a fazia lembrar constantemente a sua deficiência, era o ter de mandar fazer periodicamente, num sapateiro especializado, o sapato com plataforma, com os centímetros que faltavam nesse pé em relação ao outro e numa posição também muito diferente. Os seus sapatos têm uma duração de 3 a 4 anos e custam à volta de 450 euros, não vendo eu nela, nenhum trauma emocional, pelo fato de nunca puder usar uns sapatos de salto alto, de cores variadas ou todo o tipo de calçado que normalmente todas as senhoras sonham.
Chegada a reforma e sentindo que não era ainda altura para deixar de ser útil, tornou-se voluntária na Santa Casa Da Misericórdia de Almada, ajudando na portaria e visitando casas de idosos que se encontram solitários, ouvindo-os e conversando com eles, transformando-se no familiar que eles, ou não têm ou por eles foram abandonados. No que resta dos seus tempos livres dedica-se então a criar em croché, verdadeiras obras-primas de criatividade e beleza, que expõe com orgulho na sua banca e que mais do que pretender vender, lhe dá a satisfação e orgulho, de ver as pessoas que passam pararem e apreciarem maravilhadas as suas peças.
Esta história de vida tocou-me profundamente, não porque nela reinasse a tragédia e sim por nela reinar uma serenidade que se sente ao olhá-la e vendo a aceitação de uma forma de viver, que pouco pede á vida e onde não mora a revolta, por uma diferença física, que em algumas mulheres as transformariam em pessoas amargas e lamentosas e diz-me que afinal é simples viver, desde que a encaremos com simplicidade, tendo a certeza porém, que nem todos nós somos capazes de a viver assim e que muitos de nós levam uma vida inteira á procura de algo que nos preencha, sem sabermos muitas vezes sequer o que é, e que sem que a paz domine os nossos dias e noites.
Porém, a beleza do nosso mundo reside aí, na imensa diversidade de todo o tipo de seres humanos.