A Saga de John Brown

Em 1800, numa pequena vila do vale do rio Naugatuck, no Oeste de Connecticut, nasceu John Brown.

O seu mundo, como o de todos ali, era o do trabalho e, desde tenra idade, acostumou-se a essa realidade. Foi criado no seio de uma pobre família Calvinista, cujos rígidos valores morais lhe nortearam a vida.

O seu pai, trabalhador honesto, ganhava a vida como curtidor de peles. Era profundamente religioso e incutiu no filho os seus rígidos princípios morais, entre os quais o de considerar que a escravatura, tão habitual nas sociedades emergentes do Novo Mundo, era algo de profundamente errado.

Como qualquer pai faria, também ele procurou uma vida melhor para o filho, e mandou-o estudar para que pudesse, no futuro, vir a ser um pastor da Igreja. O jovem, porém, tinha outras intenções e, ao fim de algum tempo, decidiu voltar para casa e dedicar-se ao mesmo negócio do pai.

Quando tinha doze anos de idade, ao viajar pelo Michigan, Brown presenciou um rapaz escravo a ser espancado por um branco, seu dono. Esta cena, de uma crueldade extrema, perseguiu-o durante anos, ao ponto de lhe moldar, definitivamente e com convicção, o seu carácter abolicionista.

  A roda da vida, no seu imperturbável girar, forçou-o a enfrentar o desafio constante da própria sobrevivência. Foi curtidor de peles, guardador de reba­nhos, comerciante de lã, agricultor e vendedor de terras, mas teve sempre bastantes dificuldades em qualquer das várias actividades a que se dedicou, chegando mesmo a declarar falência, para sustentar a sua grande família – diz-se que teria sido pai de vinte filhos, de duas mulheres.

No entanto, apesar dos revezes, nunca esmoreceu nele a grande razão da sua existência: lutar contra o esclavagismo ignominioso.

Um filantropo anti-esclavagista, no Estado de Nova York, tinha cedido umas terras para a instalação de escravos fugidos. Brown, embora fosse branco, instalou-se com a sua família no seio dessa comunidade negra e lá fez a sua quinta.

Tal como o seu pai tinha feito antes, também John Brown participou activa­mente, como condutor, no chamado ‘Comboio Subterrâneo’. Este, nada mais era do que uma rede formada por homens brancos e negros abolicionistas, para ajudar e abrigar es­cravos fugitivos do Sul. Simultaneamente, foi estabelecida uma milícia contra os caçadores de escravos, que ganhavam dinheiro dos escravocratas por cada escravo capturado. Ele e os componentes dessas milícias não tinham qualquer contemplação para com os caçadores que se dedicavam a tão ignóbil actividade.

Entretanto, havia uma lei aprovada pelo Congresso – Fugitive Slave Law – que exigia que todos os escravos fugitivos, captu­rados, fossem entregues aos seus donos e que todos os funcionários e cidadãos dos estados livres tinham de cooperar. Era necessário combatê-la, para isso, Brown participou na criação da League of Gileadites, uma organização que prote­gia os escra­vos fugitivos dos caçadores de escravos e que os levava para o Canadá.

John Brown era um homem de acção e tornou-se obcecado com a ideia de promover uma acção aberta para ajudar a conseguir justiça para o escravizado povo negro.

Em 1855, com cinco dos seus filhos, John Brown foi para o Terri­tório do Kansas para ali ajudar as forças anti-esclavagistas na luta pelo controle do território. Existiam, na época, confron­tos políticos entre gru­pos anti e pró-escrava­tura sobre a questão da entrada do Kansas para a União como um estado livre ou escla­vagista.

Com uma carroça carregada de armas e munições, Brown instalou o seu quartel-general na região e, rapidamente, se tornou o líder das guerrilhas anti-esclavagistas. Ocorreram então vários conflitos entre as duas facções opostas, num dos quais perderia a vida um dos seus filhos, que viriam a culminar com uma batalha em que as forças abolicionistas, comandadas por John Brown, atacaram o acampamento dos esclavagistas, após a qual, o Kansas passaria a ser um Território Livre.

O determinado e inconformado John Brown passa a dedicar todos os seus esforços a promover uma revolta armada de escravos. Ele acre­dita que só com violência poderá pôr fim ao que consi­dera a vio­lên­cia da opressão sobre o povo negro.

Em 16 de Outubro de 1859, juntamente com mais 21 homens (incluindo três dos seus filhos), sendo 16 brancos e 5 negros, John Brown ataca, durante a noite, e toma o controle de um arsenal em Harpers Ferry e faz alguns reféns. Calcula-se que existissem no arsenal, naquela época, mais de 100.000 mosque­tes e espingar­das, que Brown preten­dia distribuir entre os escravos libertos e estabelecer uma praça-forte nas montanhas de Maryland e de Virgínia.

O Presidente James Buchanan (nortista com simpa­tia pela causa sulista) envia uma companhia de 90 homens capitaneada por Robert E. Lee (legendá­rio general do exército confederado durante a Guerra Civil Americana) que, no dia 18 de Outubro, retoma o Arsenal.

Nesse recontro, Brown é ferido e capturado, dez dos seus homens são mortos (entre os quais, dois dos seus filhos), sete são capturados, e cinco conseguem escapar (entre eles outro dos seus filhos).

Acusado dos crimes de traição e assassinato, John Brown, depois de uma acusação desleal foi levado a julgamento em Tribunal pelo governo do Estado da Virgínia oito dias após a sua captura.

Nem a acusação nem o julga­mento foram justos, mas, Brown, apesar de se encontrar ferido por vários gol­pes de sabre e baleado, esteve presente em tribunal deitado de costas numa padiola.

Foi considerado culpado de todas as acusações, cinco dias após o início do julgamento, e sentenciado a morrer por enforcamento, trinta dias após a leitura da sentença.

No caminho da prisão para o cadafalso, Brown entregou a um dos guardas um papel onde tinha escri­to as seguintes palavras: ‘Eu, John Brown, estou com­ple­tamente certo de que os crimes desta terra culpada só serão purifica­dos com sangue’.

John Brown foi enforcado no dia 2 de Dezembro de 1859. A repercussão da sua morte foi como uma faísca que iria inflamar todo o país e teve ecos no mundo civilizado da época, transformando um homem de princípios justos e humanos num mártir da causa anti-esclavagista.

Esta foi a saga de John Brown.

A morte e as acções de Brown evidenciaram a exis­tência dos fortes sentimen­tos anti-esclavagistas que se tornariam num impor­tante detonador da Guerra Civil Americana. Após quatro anos de derramamento de sangue, que ceifou a vida a seiscentos mil americanos, a grande nação americana conquista­ria o título de ‘País da Liberdade’.

A nota de John Brown a caminho da forca foi profé­tica, pois a abolição da escravatura viria oficial­mente a ser decla­rada, em 1865.

Os soldados da União, um mês depois do início da Guerra Civil, marcha­vam cantando pelas ruas de Boston ‘A Canção de John Brown’, cujos primeiros versos são conhecidos em todo o mundo:

“John Brown’s body lies a-mouldering in the grave,
John Brown’s body lies a-mouldering in the grave,
But his soul goes marching on.

Glory, glory, hallelujah,
Glory, glory, hallelujah,
His soul goes marching on.”

Reinaldo Ribeiro

04ABR2020

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