A Pesca Continua
O Diário de Notícias publicou há dias uma peça de Sofia Fonseca, sobre pescadores da Costa da Caparica. Como vem sendo hábito, o Notícias da Gandaia publica aqui esse artigo de forma a torná-lo facilmente acessível a quem busca artigos sobre a terra. Se desejar ler a publicação originalç, p+ode fazê-lo aqui: https://www.dn.pt/sociedade/com-covid-em-terra-os-pescadores-continuam-a-ir-ao-mar-13478091.html.
Com covid em terra, os pescadores continuam a ir ao mar
Calita começou miúdo na arte xávega nas praias da Caparica. Aos 50 anos, com o corpo a pedir reforma, continua a viver da pesca artesanal. Esteve quase três meses sem ir ao mar, por causa das alforrecas e do mau tempo. Mas a pandemia nunca o impediu de pescar na sua Rainha dos Mares.
São cerca de 11.30 horas da manhã e, na praia da Fonte da Telha, Costa de Caparica, já se vê lá ao fundo a Rainha dos Mares. Rapidamente, o barco de Calita – o nome pelo qual todos ali conhecem António Carlos Martins – desliza sobre as ondas e chega ao areal. Vem cheio de peixe, sobretudo choco, daquele bem grande, depois de as redes terem lá ficado durante dois dias por causa do mau tempo da véspera.
Foi assim quase todo o mês de fevereiro, sem ir ao mar, por causa das condições atmosféricas. E já antes tinha sido, durante quase dois meses, por causa das alforrecas. “Não se conseguia trabalhar mesmo. Aquilo escavaca as redes todas”, garante este pescador de 50 anos, que nunca ficou em terra por causa da pandemia. “Nunca parámos e estamos a trabalhar normalmente. Mas agora não é só o tempo, agora a covid também nos prejudica por causa das vendas. Não tendo quem venha comprar, a gente também não pode ir à pesca. Está tudo mau”, desabafa.
Saiu para o mar às 5.00 da manhã para largar as redes de emalhar num barco de pesca artesanal, que chegado a terra, é puxado por um trator areal acima. “Por acaso correu bem”, diz, satisfeito com o resultado do trabalho num mar mais agitado do que aparenta a partir da praia, sobretudo num barco tão pequeno como aquele.
“As nossas embarcações são pequeninas, não vamos para porto de abrigo. Como estes barcos podem vir à terra – são mesmo feitos para isso, não têm uma quilha nem nada, são uns fundos chatos – escolhemos uma zona em que se possa trabalhar de inverno. Então, a que dá mais condições é a Fonte da Telha”, explica. “Estes barcos pequeninos, esta pesca artesanal, ainda se aguentam porque não têm um orçamento tão grande. Com um barco destes, a gente traz o barco, a gente é que o pinta. Se for um barco grande tem de ir para um estaleiro, tem de se pagar essas despesas todas, tem de se trabalhar com mais quantidade de rede. É tudo muito mais caro”, acrescenta o pescador, estimando que haja umas 20 ou 30 embarcações como a dele ali na Costa, com redes de emalhar, em que os peixes ficam presos nas malhas da rede.
Desta vez pescou, além de raias, robalos e linguados, cerca de 200 quilos de choco, bem grande, acima dos dois quilos. De janeiro a abril, estamos na época do choco e as paragens prolongadas deste inverno ajudaram-no a crescer e a desovar. “A média é apanhar uns 50 ou 60 quilos de choco por dia”, diz António Carlos, já na pequena lota da Fonte da Telha, onde separa a pescaria por tabuleiros em função do tipo de peixe e dimensão.
“Só vivo da pesca”, conta. “Tem de se ter cabeça. Não se pode fazer planos ou tirar férias, como muitas pessoas… Não podemos porque podemos estar, como estivemos agora, um mês em que não fazemos nada. Não temos dinheiro, não vem de lado nenhum. No meu caso, sou eu, a minha mulher e filhas em casa e sou o único que trabalha. Gerindo bem, dá. Mas não podemos dar um passo maior do que a perna”, aponta.
Cavala salva o verão
Só arriscou aos 18 anos, quando aceitou comprar um barco de 500 contos, o equivalente a 2500 euros, em sociedade com um amigo. Na época, tudo o que ganhava era para dar aos pais, mas aceitou entrar no negócio quando o amigo lhe disse que um colega emprestava o dinheiro. “Então vamos. Se o dinheiro é do outro, vamos, não faz mal. Se isto der buraco alguém vai ficar a arder”, diz agora a rir-se, fazendo eco das palavras de então. Mas não, ninguém ficou a arder. “Mal ou bem, tenho gerido as coisas, sempre a subir um bocadinho”.
Há 16 anos comprou um barco para arte xávega, a que dá uso durante o verão nas praias da Costa de Caparica, onde já só há seis embarcações a fazer esta pesca artesanal. “Agora, no verão, estou mais virado para isso. Dantes a cavala era o peixe que ficava na praia e até tinha complicações com isso… Agora é o peixe que compensa trabalhar porque o carapau vai de borla, a sardinha vai a cêntimos. A cavala vai para Espanha, para os viveiros do atum. Precisam de muita quantidade de cavala. Com a cavala, a gente sabe que vai ali, apanha uma caixa, que são 22 quilos, e dá cinco euros. E temos noites em que apanhamos mil caixas. Já compensa o trabalho”, conta.
António Carlos não se queixa do preço a que vende o peixe, mas lamenta que este aumente para um “valor que não tem por onde se pegar” até que chegue ao consumidor final. “Podem comprar e pôr 300% em cima do peixe”, denuncia, apontando esta como uma das razões para o baixo consumo de peixe em Portugal. “Com o dinheiro de ir comprar peixe compram-se duas refeições no talho. Num país virado para o mar, que se gaba de ter tanto mar… As pessoas não compram e a gente não consegue vender”, comenta António Carlos, filho de uma doméstica e de um pescador do Aquário Vasco da Gama, que começou nesta vida ainda miúdo, nas férias escolares, a puxar as cordas dos pescadores de arte xávega na Costa de Caparica. “O meu pai e a minha mãe andavam lá também e eu ia”, lembra.
Com o corpo já a pedir descanso e a reforma ainda a dez anos de distância, António Carlos duvida que as filhas continuem ligadas ao mar. Uma está a tirar terapia da fala, a outra é contabilista. Essa que é contabilista, como ela fala, se viesse para aqui gerir isto não era mau negócio”, ri-se. “Não sei é se ela tinha cá alguém, a gerir as coisas daquela maneira. Gerir na escola não é a mesma coisa que gerir com homens no mar.”