Estrangeiros investem na Cova do Vapor
A Sábado publicou hoje a reportagem que se segue, sobre os investimentos estrangeiros na Cova do Vapor e de que forma têm vindo a afetar a comunidade local.
Alguns moradores protestam contra as novas construções. Investigador da história local alerta que há outros problemas mais prioritários.
Desde que se tornou um bairro da moda, com filmagens de filmes, de modelos, de novelas, um grande prémio de motonáutica e visitas de gente de fora, que o lugar castiço e típico da Cova do Vapor (Trafaria) enfrenta um dos maiores desafios da sua história. A compra de imóveis em dinheiro vivo por estrangeiros que não se importam com a clandestinidade dos mesmos criou um mau ambiente entre moradores. Uns ganham e outros não.
Se Rogério Baptista, presidente da Associação de Moradores, não quis comentar a situação à SÁBADO, Virgílio Oliveira, vice-presidente, coloca o dedo na ferida: “Uma comunidade unida e solidária foi transformada numa selva. Ninguém respeita ninguém.”
Virgílio Oliveira afirma que nada tem contra os estrangeiros (holandeses, franceses, italianos, na maioria) mas queixa-se que ninguém ajuda a Associação de Moradores. “Já aqui temos um hostel, vem para aqui tudo e mais alguma coisa fazer negócio.”
Sob anonimato, alguns moradores relataram que há casas típicas a serem vendidas por muitos milhares de euros e que outras são erguidas de um dia para o outro sem respeitar a traça local. A SÁBADO confirmou a existência de uma moradia moderna construída estilo caixote que terá sido construída durante a pandemia. “Vale tudo!”, grita alguém na esplanada do Café Transmontano, ” qualquer dia isto é tudo dos franceses e holandeses!”
Eduardo Gomes, responsável da Biblioteca do Vapor e investigador da história local, defende que deveria haver um cuidado maior por parte de quem faz essas afirmações. “Este é um bairro histórico, com muito valor. Não é bom chegar aqui um jornalista e ser confrontado com declarações que só vão beneficiar os inimigos da Cova do Vapor”, afirma. Eduardo Gomes confirma a vinda de estrangeiros, mas considera que o “problema” deveria ser discutido no seio da comunidade. “E antes de se dizer alguma coisa, deveria ser feito um levantamento para saber a verdadeira realidade da situação”, afirma.
Eduardo Gomes diz também que a Cova do Vapor tem muitos outros problemas prioritários: “Temos o avanço do mar, temos a regeneração das dunas, temos a necessidade de construções protectoras, temos a necessidade do porto de abrigo e de voltar a nutrir o espírito de comunidade. Só assim a Cova do Vapor sobrevive”.
Agora, vivem ali 200 moradores vindos da Grande Lisboa. Mas já muito aconteceu no lugar. “Era bom que todos tivessem consciência da história da Cova do Vapor e de quem passou por aqui”, frisa. Eduardo Gomes, cuja associação Margem de Coragem já gravou em video testemunhos de 12 habitantes idosos, lembra que o lugar já foi frequentado por gente muito diferente da de agora.
É preciso saber, diz Eduardo Gomes, que antes do grande avanço do mar em 1958 e em 1963, existia um areal enorme que chegava quase até ao Farol do Bugio. “Existiam vários locais para os veraneantes: A chamada Lisboa-Praia, o Bico da Areia e a Coroa de Fora propriamente dita”. Quem vinha para a Lisboa-Praia e alugava barracas de madeira ao famoso Manuel da Fruta, eram pessoas com bons empregos, gente da burguesia.
Ali perto, atracavam durante o Verão, desde os anos 30, dois barcos, o “Flecha” e o “Zagaia”, vindos de Belém. Até que um dia ardeu a ponte em madeira e os veraneantes passaram a vir pela ligação da Trafaria.
A partir dos anos 60 e da entrada do mar causada pelas dragagens, o areal recuou 1.700 metros, a Cova do Vapor começou a perder importância e a Costa da Caparica desenvolveu-se. Foi aí que a Cova do Vapor começou a ser povoada por pessoas diferentes: “O meu tio-avô, por exemplo, era marceneiro e chegou em 1956. Como ele, vieram muitos outros”, conta Eduardo Gomes.
Virgílio Oliveira, vice-presidente da associação de moradores e descendente dessa geração, conta que “não era fácil entrar na Cova do Vapor” e lembra que inclusivamente existia um cartão para entrar. “Era um grupo de amigos que se conhecia nos empregos (Sorefame, Telefones) e chamavam outros. A associação de moradores é de 1993 mas antes já existia um grupo e foi esse grupo de pessoas que conseguiu trazer para aqui os postes da EDP e a água potável, e que construiu a casa onde estamos. Agora, quem nada fez, vem para aqui só pelo negócio”.
Conceição Varela, outro elemento da associação de moradores, sente-se desgostosa: “Tinhamos um grupo de mulheres que fazia muitas quermesses para angariar fundos para a construção desta casa, outros contribuíam com alcatrão para a estrada e todos os sócios contribuíam. Agora não”.
Antigamente, lembra ainda Conceição Varela, a associação passava uma declaração para quem queria fazer um arranjo na casa. “Agora, é cada um por si”, diz. Virgílio Oliveira vai mais longe: “A associação foi desrespeitada e ultrapassada. Se calhar daqui a seis meses não há direcção. Há para aí um clã que só sabe criticar. Que apareça com uma lista às eleições!”
A Cova do Vapor é um mimo de arquitectura popular, de vielas construídas e casas feitas ao modo de cada um. Muitas ainda são de madeira, como a lindíssima casa em azul e branco de Eduardo Gomes, mas outras já estão em cimento, decoradas com conchas e azulejos alusivos à vida marítima. Em 1994, a Cova do Vapor inspirou um documentário da RTP. No filme de 24 minutos, o arquitecto Manuel Graça Dias salientou “a intensidade, o amor e a criatividade” com que as casas foram feitas. “Tudo feito com muito sacrifício e amor”, sublinha no filme a esposa de um elemento da já existente associação de moradores.
A SÁBADO visitou três vezes a Cova do Vapor de 2021: uma a sós, outra com Eduardo Gomes e outra com uma pessoa que não quis se identificar. A percepção do lugar é completamente diferente consoante a companhia. Eduardo Gomes leva-nos pelas vielas pitorescas e diz: “Porque é que todos querem vir para aqui? Porque este lugar tem magia, é especial, aqui entalado entre o rio e o mar”.
Na visita a solo, em novembro, a SÁBADO reparou nos turistas encantados com o que vêem. Um ciclista alemão que anda a dar a volta a Portugal em bicicleta desde o ano passado admite: “Olha, eu não conhecia, estou maravilhado”.
Junto ao edifício da Associação de Moradores, o areal ameaça engolir pedaços de asfalto. Alguém construiu junto ao campo de futebol uma casinha em madeira pintada de azul e amarelo, com sofás onde qualquer um se pode sentar a ler. Ali perto, a Biblioteca do Vapor colocou uma pequena casinha em madeira, a Covateca, com livros que qualquer um pode retirar e ler. Deparamos com O Amante de Lady Chaterley de D. H. Lawrence numa pilha onde também está Para Acabar de Vez Com a Cultura de Woody Allen.
Avançando junto ao casario e de frente para o mar, há uma mistura de casas em madeira, uma amarela, outra azul. Numa placa em madeira alguém escreveu “Felicidade”. Seguimos pela rua e junto ao mar, onde um pescador solitário pesca em plena liberdade, há uma casinha em madeira verde e parapeitos brancos. Mais à frente, fica o “Espaço de Lazer Ambiental Fernando Figueiredo”, um parque feito pelos moradores em tons azuis, amarelos, laranja.
Há casas em obras. Uma está a ser rebocada, noutra constrói-se uma parte de cima em madeira. À frente de uma casinha em madeira esvoaça uma bandeira portuguesa. Alguém colocou um capacete num poste e mais à frente, ergue-se uma bandeira grande da Trafaria. Por ali, o que não faltam são cadeiras em plástico que permitem a qualquer um sentar-se e meditar em frente ao Tejo.
Lá mais ao longe, ficam os silos da Trafaria e embrulhado num mar de arvoredo o casario que trepa a encosta, o Pica Galo. Tanto a Trafaria como o Pica Galo já começaram também a ser cobiçados por estrangeiros e dizem-nos que Eric Cantona, a lenda do futebol do Manchester United e de França, comprou e restaurou uma casa na Trafaria.
Vira-se a esquina e volta-se à rua principal, onde fica a padaria que diz vender a melhor bola de Berlim do universo e onde os turistas são convidados a beber a bebida original do local, a “Cai Bem”.
A terceira visita feita com um morador que não quis ser identificado inclui alguns desabafos: “Veja isto, aqui tem-se um pedaço de quintal, coloca-se dois vasos e depois num instante constrói-se ali uma casa”, explica. “Há casas construídas entre a sexta-feira e a segunda, quando não há fiscal”.
A mesma pessoa revela os truques usados para na época alta se poder ter estacionamento para a casa. “Colocam correntes a um metro da porta e já está. Ali já ninguém mexe…” No Verão, afirma, os preços da mercearia sobem em flecha e só se consegue alugar uma casinha “por entre 800 a mil euros”.
Abandonamos lentamente a Cova do Vapor pela estrada que leva à Caparica e à Trafaria. O “lugar com magia” de Eduardo Fernandes estará ameaçado pelo negócio de que fala Virgílio Oliveira? “A Cova do Vapor já viveu vários ciclos. Este é mais um, que tem de ser levado com sabedoria e união entre todos”, apazigua Eduardo Fernandes.
Muito bem documentada esta “História da Cova do Vapor.
Parabéns!