A Deriva de Um Continente
Em tempos imemoriais, a Terra, na arrogância da sua juventude, agitada por colossais forças interiores e bombardeada por meteoros alucinados, foi sujeita a assombrosas convulsões tectónicas que provocaram a grande deriva continental.
Depois, durante mais de duzentos milhões de anos, foi-se adaptando à sua nova realidade e o mapa do planeta foi desenhado, até próximo do que é actualmente. Os continentes definiram o seu espaço, o clima estabilizou-se, surgiram e extinguiram-se espécies animais e vegetais até que, quase no fim desse longo período, surgiu o Homem.
Este, de modo diverso dos restantes animais que, com pouco tempo de vida, já são aquilo que serão durante toda a sua existência, evoluiu mentalmente e teve a capacidade de se modificar, sucessivamente, a si e à natureza.
No afã desenvolvimentista, o homem criou mecanismos próprios para lhe suavizar a existência, sem reparar que estes, insensivelmente, lhe iam moldando uma mentalidade individualista e, acima de tudo, ambiciosa.
Assim, a sede de poder de alguns, levou-os a dominar os outros, para deles extraírem riqueza e mais poder. Implantou-se a herança, ou seja, a transmissão do domínio adquirido de pais para filhos. Esta, além de ser uma forma injusta de apropriação de bens, exacerbou o desejo pela propriedade privada como expoente de autoridade e riqueza. O conflito estabeleceu-se. A ambição dominou as mentes dos governantes sequiosos de conquista e de domínio, até que, no século XX, os diversos interesses dos países mais poderosos redundaram em dois conflitos de proporções inimagináveis e planetárias. Quando a paz, finalmente, foi alcançada, a humanidade sentiu a necessidade de regular o seu próprio comportamento, para que houvesse harmonia e mesmo a sobrevivência entre pares.
Para a reconstrução dos países devastados pela guerra foi necessário toda a iniciativa privada e o sistema económico capitalista, que vingava desde o final do feudalismo, estabeleceu-se no mundo ocidental com um vigor crescente e redobrado. Criaram-se leis, estabeleceram-se novas fronteiras, fizeram-se acordos no sentido de permitir uma maior equidade nas trocas comerciais entre os países e, pela primeira vez na história da humanidade, as classes mais desfavorecidas, passaram a beneficiar também de uma parte ínfima, é certo, da riqueza global.
O denominado mundo ocidental e, particularmente, o continente europeu, foi pioneiro na distribuição dessa riqueza produzida e na criação de estruturas de apoio social às suas populações. Apesar das diferenças de desenvolvimento existentes entre os diversos países, os povos da Europa, nas últimas décadas, experimentaram, como um todo, uma prosperidade e um nível de bem-estar nunca antes alcançados.
O contraste com os países de África, da Ásia e da América Latina era enorme e a Europa passou a ser um pólo atractivo – um eldorado – para as populações desfavorecidas dessas zonas do globo. Todos queriam usufruir da riqueza europeia e, pelas suas fronteiras passavam, num fluxo contínuo, milhares de emigrantes esperançosos, a que alguém, com objectividade, chamou “a deriva das multidões famintas”.
Entretanto, no Velho Continente, o capitalismo no seu afã de criação de riqueza, e alicerçado num progresso imparável e inimigo do homem, enveredou pelo caminho da ambição desenfreada. As grandes empresas e corporações para obterem lucros maiores, resolveram diminuir a sua folha de pagamentos e optaram por se “deslocalizar”, ou seja, transferiram as suas fábricas para os países do chamado “terceiro mundo”.
A força de trabalho passou, então, a ser paga com os “salários de fome” praticados nesses países e onde não existem quaisquer encargos com os apoios sociais, absolutamente inexistentes, dos trabalhadores. Como resultado, os lucros das empresas subiram em flecha.
No entanto, um perigo oculto começou a surgir, sem que tivesse sido previsto. A “deslocalização” de uma fábrica levava ao despedimento de um grande número dos seus trabalhadores originais. Estes passaram a receber o respectivo fundo de desemprego durante o prazo estabelecido pela lei. Findo esse período ficavam entregues à sua própria sorte, sem qualquer apoio e sem a possibilidade de conseguir outro emprego. O desemprego chegou e atingiu níveis só comparáveis nos períodos de guerra. Como corolário, o consumo caiu.
Ao fim de pouco mais de sessenta anos, vê-se a curva do bem-estar das populações inverter a tendência de crescimento e começar a descer. No início do século XXI, apesar dos sintomas já serem visíveis, a classe média, recusando-se a ver a realidade, ainda recusa a existência da crise que se avoluma, silenciosa, com a força de um maremoto.
Entretanto, a ambição, nascida no seio de um capitalismo desregrado, elevou o dinheiro aos píncaros da divindade esquecendo aqueles que produzem a riqueza. A civilização ocidental abandonou os seus filhos transformando-os em meros consumidores de bens enquanto, na Europa, volta a pairar o espectro da fome e do desespero, frutos agrestes portadores das sementes de uma violência que se adivinha.
Paradoxalmente, o anseio de riqueza está a gerar a iniquidade na Europa e a sua consequente decadência.
A deriva do continente já é evidente.
Reinaldo Ribeiro – 18FEV2020