Costa da Caparica, cidadania precisa-se
A cidade da Costa da Caparica é um caso urbanístico a todos os títulos surpreendente. Observe-se primeiro as suas características morfológicas e geográficas: extenso areal de muitos quilómetros, balizado pelos perfis distantes e serenos da exuberante serra de Sintra a norte; e a sul, da sua irmã, geologicamente mais nova, climatérica e ecologicamente diferenciada mas não menos prendada, serra da Arrábida, que se estende para um final grandioso e tremendamente dramático no cabo Espichel, onde se precipita nas águas oceânicas. A nascente a cidade tem como limite a Arriba Fóssil, monumento natural de grande riqueza paisagística e ambiental que assegura à urbe um invejável microclima abrigado, ameno e soalheiro. Do lado oposto, a poente, a intransponível fronteira é o Atlântico, que neste preciso ponto se revela de uma abundância piscícola invulgar graças à proximidade benéfica da desembocadura do Tejo logo ali ao lado, na Cova do Vapor. Para além de tudo isto, que não é pouco, a cidade está cercada de pinhais, matas e férteis terrenos hortícolas, aninhada junto à agitada e serena, generosa e egoísta, arrogante e humilde, cosmopolita e bairrista, elitista e popular, culta e ignorante, centralista e periférica, bela e horrível, grande e pequena, moderna e vetusta capital do país.
Que mais se pode pedir ou querer para uma cidade-subúrbio que, ainda por cima, tem uma escala e uma dimensão que proporcionam uma boa qualidade de vida à população; uma cidade que pode ser percorrida tranquilamente, em toda a sua extensão, de bicicleta e a pé. O que é que falta a uma terra com tal ADN? A surpresa, pasme-se, está na resposta a esta pergunta aparentemente simples e inofensiva: tem tudo para ter tudo, mas falta-lhe quase tudo.
Podemos começar por dizer que lhe faltam as acessibilidades (esqueçam o IC20 e a paralisante Ponte 25 de Abril – onde está uma nova ponte ou um túnel de ligação directa a Lisboa? esqueçam os TST – onde estão as viaturas modernas e os horários e os preços adequados? Onde está a ligação por metro de superfície a Almada?), podemos dizer que lhe faltam os equipamentos estatais e institucionais (hospital ou centro de saúde com médicos de família para toda a gente; tribunal; loja do cidadão ou do munícipe; biblioteca pública; museu ou pólo museológico; recintos desportivos, etc.), podemos dizer que lhe faltam muitos equipamentos e investimento privado (comércio tradicional moderno, voltado para as necessidades da população e de proximidade e de afectos, etc.), podemos dizer que a vida cultural é rara ou inexistente (cine-clube; grupo de teatro; concertos musicais; congressos; arte pública e de galeria; festivais vários; actividades multi-culturais; concursos de pesca nos esporões e outras actividades desportivas, etc.), mas a principal carência da Costa da Caparica é de cidadania. A Costa da Caparica tem população para ser cidade, tem habitantes, não tem é cidadãos.
É certo que o problema da falta de cidadania não é uma condição específica e exclusiva da nossa cidade. Sabe-se que os portugueses são em geral avessos à participação na vida pública. Não é aqui o local, nem este o momento, para analisar as razões dessa apatia crónica que já é, aliás, objecto de estudo por parte das Ciências Sociais. No entanto, não podemos deixar de referir alguns aspectos particulares que ajudam a compreender as idiossincrasias indígenas. Em primeiro lugar a ocupação permanente do sítio é relativamente recente o que faz com que não exista uma longa História local, em que a identidade colectiva se possa rever e alicerçar inequivocamente. A grande maioria das povoações portuguesas, de norte a sul, conta com vários séculos de existência e quase todas participaram activamente no devir histórico do país (na fundação da nacionalidade; nas lutas contra os mouros, contra os castelhanos, contra os franceses; nos descobrimentos e nas conquistas; em guerras civis e revoluções, etc.); a Costa da Caparica, enquanto povoação, terá pouco mais de cento e cinquenta anos e no seu currículo histórico pouco mais consta que uma rivalidade muito acesa com a Trafaria, em cujo termo inicialmente se encontrava. Acrescenta-se a isso o facto de o núcleo fundador da localidade – os pescadores – ser neste momento, em termos quantitativos, um grupo minoritário com tendência acelerada a perder peso social e a diluir-se rapidamente na massa de gente de fora que procura residência ou trabalho na cidade. Essa deriva no percurso histórico da freguesia é um fenómeno natural e irreversível, dada a grande proximidade a Lisboa. É um facto novo de duas ou três décadas, mas incontornável, que a maior parte dos moradores é originária de outros pontos do país e muitos deles de além-fronteiras. Por essa razão, muita gente não se sente ainda motivada para o contributo da sua participação na vida da polis. A maioria limita-se a servir-se da cidade apenas como dormitório nuns casos, noutros como trabalhório, mantendo um grande alheamento e abstenção em relação aos seus problemas quotidianos.
É claro que a questão da actividade cívica e do serviço público não se circunscreve, como generalizadamente se pensa, à esfera da política ou da gestão autárquica. Há outras zonas de intervenção para o exercício da cidadania, nomeadamente no âmbito da criação e da produção de conteúdos, de bens culturais, de informação, de equipamentos e plataformas de projecção cultural e artística. Para a concretização dessas matérias é imprescindível o suporte institucional, mas de facto nada se faz sem as pessoas. Numa situação ideal todos os cidadãos dão o seu contributo voluntário, pondo ao serviço da comunidade muitas das suas aptidões e interesses profissionais e pessoais, saberes e competências, na construção da coisa pública; porém, as situações ideais são meras abstracções, situam-se no plano das utopias e, pura e simplesmente, não existem.
Ou seja: um país, uma região, uma província, um concelho, uma cidade – neste caso uma cidade – são entidades cuja edificação é um processo colectivo árduo, difícil, repleto de contrariedades, de conflitos e de querelas que têm na sua génese as identidades e como resultado final o fortalecimento e consolidação das próprias identidades. Nesse jogo permanente de contradições, é sinal de muita maturidade e grande sensatez a capacidade de aprender com a experiência alheia e transplantá-la, adaptando-a, para cada situação concreta. É sempre bom saber o que é que os outros fizeram ou andam a fazer, e depois tentar fazer melhor.
Neste ano de 2012, a cidade de Guimarães assume-se perante o mundo como Capital Europeia da Cultura. Já tivemos Lisboa e mais recentemente o Porto com esse estatuto. Um crescente número de cidades e vilas desenvolve múltiplas actividades, como sejam festivais de cinema, de teatro, de jazz, de música clássica, de música contemporânea, de artes de rua, de artes plásticas, de literatura, de gastronomia, de artesanato, etc.; enfim, existe um universo muito variado de possibilidades e opções, sendo hoje largamente consensual a grande importância desses acontecimentos na qualificação das cidades, na sua promoção e na melhoria do padrão de vida das comunidades.
Com a execução parcial do Programa CostaPolis a Costa da Caparica obteve já os benefícios da recuperação e melhoramento de muitas zonas, mas isso, só por si, não chega. Não se construiu uma nova cidade, mas melhorou-se bastante a que existe e uma parte considerável desses objectivos está realizada. É imperioso que a população não adormeça à sombra da obra feita e utilize o território dando-lhe vida com eventos dos quais possa, ela própria, usufruir, e que também sirvam de factores de atracção para muitas outras pessoas.
Fazer opinião, ou tentar fazê-la, não pode ser simplesmente observar algumas coisas e depois rascunhar umas análises, onde se apontam uns tantos problemas e as dificuldades que afinal toda a gente conhece. É dever do opinante dizer o que pensa e, desassombradamente, lançar desafios. Fazer opinião é essencialmente semear ideias que, se forem boas e exequíveis, possam germinar e frutificar em realizações. Pela nossa parte, é o que pretendemos fazer. É nossa convicção que a cidade podia começar a reflectir a fundo, de forma ambiciosa e para o futuro. Nesse sentido deixamos aqui uma ideia, propondo à comunidade caparicana que celebre e institua o próximo ano sob o lema “Costa da Caparica, Capital da Cultura e do Desporto do Municipio de Almada – 2013”.
Temos um ano pela frente para seduzir a população para esta ideia e criar um corpo de voluntariado treinado e eficiente; para planear, desenhar e construir uma programação de qualidade e confirmar presenças e participações, quer na vertente desportiva, quer na vertente cultural, à medida das nossas capacidades e necessidades; para procurar apoios e financiamentos; para calcular e fazer a logística do evento; para levar aos órgãos autárquicos o nosso entusiasmo, captando os seus recursos para o projecto que se pode alargar, com periodicidade anual ou outra mais alargada, às restantes freguesias do Concelho se a Câmara Municipal e as Juntas de Freguesia assim o entenderem.
Para que isto se possa realizar, apela-se aos cidadãos para que o sejam, apenas. Mãos à obra?
P. G.
27.01.12
Jorge concordo inteiramente contigo que é necessário dinamizar a cultura e a comunidade LGBT. Ainda mais porque por todas as suas características naturais e de lazer, a Costa continua a ser visitada anualmente por muitos gays. Fiz o ano passado, aliás, uma proposta à CMA nesse sentido, mas não me parece que seja intenção da Câmara fazê-lo. Na proposta mencionei a ideia de se criar um polo na Costa do Queer Lisboa (Festival de Cinema Gay). Fica a ideia para irmos todos amadurecendo.
Bjs e Abraços
Excelente ideia Pedro. Conheço cidades no sul de Inglaterra, muito mais pequenas do que a Costa de Caparica e que são conhecidas quer pelos acontecimentos culturais que se celebram anualmente, quer pelas características da sua população ou das suas actividades. Glastonbury no southwest de Inglaterra é um exemplo: anualmente realiza-se um importante concerto que movimenta milhares de pessoas de todo o mundo e devo referir que as condições não são das melhores, sobretudo quando chove, o que raramente não acontece. Para além desse acontecimento, refiro-me ao concerto, não à chuva, e ao longo do ano, a town é conhecida e procurada por turistas tanto ingleses como estrangeiros por ser um centro hippie e com tradições esotéricas: conta-se que aí nasceu o legendário rei Artur e a história de Excalibur e todo o mistério à volta de fada Morgana. Também em Portugal temos pequenas cidades que albergam acontecimentos anuais de música como é o caso de Paredes de Coura, mas ao longo do ano perdem ênfase.
Parece-me que em relação à Costa de Caparica, é urgente para além de preservar as tradições de povoado piscatório as quais como bem dizes, tendem a diluir-se no suburbanismo resultante da especulação imobiliária das ultimas décadas, voltar a acolher e dinamizar a comunidade LGBTQ, que nas décadas de 60, 70, 80 e 90 faziam parte e contribuiram positivamente para a vida da Costa de Caparica, em termos sociais, culturais e lúdicos. Quem não se lembra das festas no ‘Duche’ , da passerelle que era a Rua dos Pescadores, e da Praia do Castelo e 19; das festas de fim de semana nos quintais das vivendas e anexos? Hoje não existe, que eu conheça, um único bar gay. Parece-me que seria positivo voltar a implementar a cultura LGBTQ para colorir e alegrar a vida pardacenta cá do pedaço.
Abraço.