Enfrentando a Morte
Alípio de Freitas esteve internado, durante os últimos anos da sua vida, em vários hospitais, devido aos problemas físicos que, em catadupa, o afligiam com o avançar imparável da idade.
Já o tinha visto em diversas ocasiões, sem esperanças aparentes de sobrevivência e, no entanto, ele recuperava com a lucidez do costume e sempre preocupado com os problemas do mundo. Como da vez, em que mal abriu os olhos, me perguntou: “Como está a situação das eleições em França?”
Depois de tantas intervenções cirúrgicas, ninguém mais acreditava que, daquela vez, ele conseguisse recuperar. Estava magro, macilento e eu até acreditei que ele estava a ponto de desistir.
Estávamos em 2017.
Dias depois, durante mais uma visita que lhe fiz no hospital, fiquei alegremente surpreendido com o seu estado de saúde. Estava restabelecido, as cores tinham voltado ao seu rosto e a sua loquacidade e inteligência tinham voltado com toda a força antiga.
Foi, então que ele me contou um sonho impressionante que tivera durante o coma em que tinha estado durante alguns dias:
“Eu estava, sozinho, sentado numa pedra á beira de um caminho. Era um dia luminoso – no meu sonho eu não era cego – e a paisagem era agreste, rochosa, sem árvores, com o chão coberto de ervas amareladas e secas pelo sol excessivo. Não havia ali mais ninguém.
Estava sentado, não tanto pelo cansaço do meu corpo, já alquebrado pela idade, mas sim pela necessidade de pensar em tudo o que tinha sido o já longo percurso da minha vida. Era como uma retrospectiva e, como tal, revi todas as coisas que fiz, e acho que ainda devia ter feito mais, mas também pensei naquelas menos boas, das quais, só não me arrependo, porque sempre achei que o arrependimento é uma forma de tristeza e eu não quero ser tristeza, como dizia o meu amigo Zeca Afonso.
Estava eu nestas cogitações, quando vejo aproximar-se um belo rapaz surgido, aparentemente, do nada. Começa a falar comigo sobre a minha posição, ali, sozinho, naquele ermo. – E, nessa abordagem, ele foi simpático e insinuante.
Olho-o sem compreender onde pretende chegar com aquela conversa mas, habituado ao longo de toda a vida a desconfiar sempre, limito-me a aguardar que ele seja mais explícito e me esclareça.
Como se lesse os meus pensamentos ele pede-me, educadamente e com alguma veemência, para eu me levantar e para o acompanhar num passeio.
A sua figura resplandece, como se fosse um anjo… ou um demónio.
Não o compreendo, mas convenço-me rapidamente de que aquela figura é um disfarce da morte que me vem buscar.
– Amigo, sai daí e vem comigo! – Insistiu o rapaz.
O meu instinto de sobrevivência alertou-me e eu, com uma energia antiga, reagi ao convite dizendo-lhe:
– Não, não vou contigo! Sei bem o que tu queres! – E, com determinação, gritei-lhe com uma raiva incontida:
– Vai ‘prá’ puta que te pariu!
Foi nesse momento que acordei de um coma profundo na cama do hospital.”
Ao sair do hospital, depois desta conversa, fiquei a pensar que aquele era o autêntico Alípio que eu conheço e admiro e que o mundo inteiro respeita. Um lutador, um homem de coragem, um verdadeiro resistente!
Reinaldo Ribeiro