O Barco Noturno para Cantão
Quando cheguei a Macau, em 1986, a minha curiosidade ia, na sua maior parte, para a China, especialmente para Cantão, que ficava muito perto, a cerca de 140 quilómetros.
Foi, portanto, natural que as minhas primeiras saídas se dirigissem a Cantão, deixando a grande, poderosa e pujante cidade de Hong Kong, para segundo plano, muito ao invés da maioria da comunidade portuguesa, e ainda mais da macaense.
Que não haja confusões, fui amiúde a Hong Kong, visitar a sua espetacular arquitetura, visitar o mercado de Stanley, fazer compras de eletrónica, e não só, a Tsim Sha Tsui e, claro, quando os meus filhos estavam comigo, no verão, inevitavelmente, a Toystore e o Water World, com passagem pela Pizza Hut e MacDonald que não existiam em Macau.
Depois, a vida noturna da colónia britânica, a Ilha de Lantau, onde construíram o enorme Buda, que também cheguei a visitar, e até a subir as extensas escadarias. Assim como a ilha de Cheung Chau, preferida pela comunidade artística de Hong Kong para habitar, não só pelos preços mais módicos, mas principalmente pelo seu ambiente descontraído peculiar.
Porém, como disse, no início, a minha curiosidade ia toda para Cantão.
Um aspeto importante foi a minha descoberta da carreira noturna do barco para Cantão. Era uma noite mágica!
A tripulação bem tentava proibir os passageiros de chegar às zonas exteriores, mas depressa descobri que alugando ou o camarote de primeira, com duas camas, ou o outro com quatro camas, ambos na frente da embarcação, no piso inferior à ponte de comando, a coisa passava, desde que se mantivesse o silêncio.
Embarcávamos no Porto Interior, com o cuidado de ter os bilhetes comprados antecipadamente, de forma a garantir a posição naqueles camarotes, garantindo o acesso ao exterior.
Aguardávamos a saída do porto em Macau, em que os marinheiros estavam nas manobras de desembarque e podiam-nos ver, para depois sairmos, com os cobertores, porque por vezes as noites arrefeciam.
Os meus rapazes, devidamente industriados para a necessidade de silêncio, com exceção de sussurros, acompanhavam-me na aventura, tal como em muitas outras, de resto.
A embarcação era pequena, tipo cacilheiro e tinha o castelo de popa inclinado, mesmo indicado para nos recostarmos e apreciarmos a paisagem.
Não tenho a certeza se a proibição dos passageiros de ficar no exterior tinha a ver com a segurança, porque realmente, se alguém caísse à água seria muito difícil recuperar a pessoa, no breu da noite, nas águas espessas e castanhas do delta do Rio das Pérolas.
Contudo, também era verdade que no nosso trajeto passávamos por bases navais com diferentes embarcações e estruturas defensivas. Ou seja, poderia também ser outra questão de segurança, não dos passageiros, mas de defesa nacional.
O barco ia subindo o rio, passando por diversas povoações, naquela altura muito mal iluminadas, com luzes bruxuleantes, denunciando lanternas a petróleo ou outro combustível, sem ser visível qualquer ser humano.
Também passávamos por diversas e variadas embarcações, a motor, claro, mas com batidas muito espaçadas. Nunca percebi que motores seriam aqueles, com um tum-tum-tum tão sincopado.
Estas embarcações tinham formas completamente diferentes, consoante as matérias que transportavam, algumas muito longas, tipo barcaças, entre estas, claramente as que transportavam terra, eram muito distintas.
O transporte de terra acabou por ter um incremento exponencial quando Macau começou a construir o seu aeroporto, baseado no aterro de uma área em frente às ilhas da Taipa e Coloane.
O aterro era a técnica mais usada desde há muitos anos, sendo a forma como Macau crescia – e cresceu muito, antes e depois de lá estar. Não só a cidade de Macau cresceu muito, como a Ilha da Taipa, que antes eram duas ilhas, como a zona entre a Taipa e Coloane, atualmente uma nova cidade, Cotai (juntando as iniciais das ilhas anteriores).
Já agora, a talhe de foice, a polémica do aeroporto, que determinou a demissão do governador Carlos Melancia.
Para quem vivia em Macau, era evidente que não foi Melancia quem esteve envolvido no negócio, por duas razões: primeiro, a verba do suborno era irrisória. 50 mil contos, 250 mil euros, eram uma verba que na Macau daquele tempo não iriam aliciar Melancia.
Depois, era evidente que Macau não tinha poder suficiente para afrontar a China, como os britânicos de Chris Patten tinham. A polémica tecnológica, em ambos os locais e para ambos os aeroportos – que era na verdade económica – debatia-se entre a construção sobre aterro, com terra fornecida pelos chineses, ou sobre estacas, no nosso caso, fornecida pelos alemães.
Enfim, como era evidente, o aterro ganhou e o aeroporto nasceu.
Voltando ao barco, lá íamos, todos embrulhadinhos, a absorver o que a noite do Rio das Pérolas nos ia oferecendo, até sucumbirmos ao João Pestana, altura em regressámos ao camarote e nos deitámos nos beliches que nada deviam à comodidade.
Outra das características do barco era o despertar, mais do que agreste, com a voz feminina estridente que faria corar de inveja uma apresentadora norte-coreana, seguida por marchas revolucionárias, ainda mais estridentes e ribombantes, tipo “O Povo Marcha pela Revolução Vitoriosa ao Sol Nascente.
Nem as baratas conseguiam dormir. Estávamos a aproximar-nos do nosso destino, o Porto de Cantão, era o sinal para acordar e preparar as mochilas..
A alfândega e fronteira, onde adquiríamos os vistos para aquele fim de semana em Cantão, que mais tempo não poderia ser, para isso teria de adquirir outro visto, antecipadamente, nas instalações da famosa Nam Kong, a agência chinesa que tratava desde os vistos, até negócios.
Curiosamente, quando regressei definitivamente a Portugal, em 1998, ainda havia uma Nam Kong, perto da cervejaria Portugal, depois a China mudou de política. Segundo me disseram, era mais barato e eficiente apoiarem as lojas chinesas com benefícios no transporte de produtos e crédito na sua aquisição, do que pagar a uma chusma de funcionários, não muito zelosos.
Enfim, lá passámos a alfândega, pouco depois das 6 da manhã e andámos uns 15 minutos até à ilha de Shamian, onde alugámos um quarto de três camas num pequeno hotel, perto do grande White Swan, também na ilha.
O quarto, sem luxos era bem decente e ficava perto de tudo o que o turista necessitava em Cantão, incluindo um café e alguns restaurantes. Estava a começar a abertura chinesa…
A começar… ainda predominava a túnica maoista e o trânsito era quase totalmente composto por bicicletas. Isso dava um ar etéreo à cidade, com o tilintar das campainhas e do ciclismo ele próprio.
Já conhecia o local onde podíamos alugar as nossas bicicletas, por sorte com uma pequena à medida do Telmo e partimos todos à descoberta da cidade.
A primeira e insistente sensação, e muito forte, é a que advém de rolar no meio de milhares de ciclistas, com o tal som de fundo, meio tilintante, e, melhor ainda, sob o olhar simpático e sorridente de todos os chineses que nos rodeavam.
As ruas, com os edifícios predominantemente cinzentos, desfilavam e, devido à baixa velocidade, dava-nos tempo para ir vendo o que acontecia aqui e ali.
Assim que parávamos para ver algum detalhe, nomeadamente num sapateiro que fazia malas – e consertava calçado – logo uma pequena multidão se juntava ao nosso redor, vendo o que estávamos a ver.
Assim que apontava para qualquer coisa, um murmúrio percorria o magote. Levei algum tempo a perceber a razão, até que um, mais afoito, tentou apanhar alguns pelos entre o polegar e o indicador. Um waaaah coletivo percorreu os presentes: pelos nos braços!
A primeira visita foi ao templo de Liurong, ou Baozhuangyan, em cantonês, ou das seis figueiras da Índia, uma torre hexagonal de 9 andares, que começou a ser construída no ano de 507, mas com a atual estrutura a ter sido erigida em 1373 e depois, devido a um incêndio, em 1373 e, pela mesma razão, em 1800.
Havia uma pequena loja na entrada onde aproveitei para comprar algumas estatuetas em “pedra sabão”, coisa que fui sempre fazendo. Infelizmente, as minhas empregadas domésticas adoravam parti-las e, passados anos, poucas sobreviveram.
Já na minha juventude tinha o passatempo de construir aviões, réplicas à escala, da Airfixx ou da Revell, nenhum sobreviveu à empregada dos meus pais.
É sina minha, esteja eu onde estiver. Pronto.
Depois de aproveitar aquela oportunidade para descansar – com um olho nas bicicletas – e apreciar a paisagem, retomámos o passeio.
Há um detalhe importante sobre a forma como os chineses pedalam. Há uma sincronia que se vai impondo, tal como Pessoa dizia da Coca-Cola, primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Todos pedalam ao mesmo ritmo, lento, sendo impossível ultrapassar e ainda mais abrandar, no meio da nuvem de centenas a milhares de ciclistas, homens e mulheres. Depressa se apanha o ritmo. De resto, não há outro remédio dentro do enxame…
À porta de fábricas ou edifícios públicos, os estacionamentos de bicicletas prolongavam-se em longas filas ordenadas de muitos e muitos metros, com guardas de braçadeira e apito estridente, que não hesitavam em usar pela mais pequena razão.
Retomámos o passeio na direção do Salão Memorial de Sun Yat-Sen, sempre envotos em ciclistas chineses e na toada lenta que percorria ruas e avenidas.
O Memorial, muito grande, também octogonal, mas ao contrário do pagode, uma torre, este era uma enorme sala com mais de 3200 lugares sentados, sem pilares a suspender a cúpula.
Foi construído por subscrição pública, num processo rápido, iniciado em 1929 e terminado em apenas 3 anos, em 1931, no local onde se situava o Palácio Presidencial de Guangzhou, durante o Movimento de Proteção Constitucional, quando os nacionalistas operavam um governo “chinês” rival do regime de Pequim da Clique de Zhili.
Após a proclamação da república e antes da proclamação da República Popular de Mao Zedong, houve grande instabilidade na China, com a digladiação de diversos Senhores da Guerra, entre os quais, a já referida Clique de Zhili.
O palácio foi danificado durante um ataque em 1922 a Sun Yat-sen, durante o qual – embora ele já tivesse fugido – a sua esposa escapou por pouco aos bombardeios, juntando-se a ele e a Chiang Kai-shek, seu cunhado, na canhoneira Yongfeng.
O próprio salão foi severamente danificado – mas não devido a tiros de canhão – sendo sempre reparado até 1998, quando foi totalmente modernizado para a condição atual. Uma estátua de Sun Yat-sen foi erguida em frente à entrada principal.
Regressámos ao hotel, fomos ao restaurante perto do hotel, com muito mais empregados do que clientes e fomos para a cama dormir o sono dos justos. Pedalar todo o dia ajudou os jovens, eu incluído, a cair sem resistência nos braços de Morfeu.
De manhã, após o pequeno-almoço de torradas e café com leite, uma fragilidade minha, na verdade, pois nunca tive estômago para caldos de carne e outras das iguarias chinesas que são servidas logo de manhã e, claro que os meus filhos, que remédio, também tinham de seguir o exemplo. Desforrávamo-nos ao almoço…
Partimos logo porque iríamos apanhar o barco de regresso ao fim da tarde.
O primeiro destino era a estátua dos 5 bodes. Era um pouco mais longe, no jardim Yuexiu. Voltamos a pedalar, sincronizadamente, no enxame.
A estátua refere-se a uma lenda de Cantão, a uma seca que se prolongou por anos, criando uma fome profunda. Foi aqui que, ao mesmo tempo que uma melodia se espalhava, uma nuvem de cinco cores preencheu os céus, soprada pelos ventos do mar. Então, cinco deuses montando cinco bodes, cada um segurando um feixe de trigo com seis talos. Deram o trigo ao povo, deixaram os cinco bodes e partiram pelas nuvens. As pessoas espalharam os grãos no chão. A partir de então, Guangzhou teve ventos e chuvas regulares e colheitas ricas, e os cinco bodes divinos tornaram-se de pedra, em pé na colina.
O jardim era acolhedor e frondoso, com um lago e respetivos cisnes, com a fila, apreciável, de casais e famílias chinesas tirando uma foto, uns ajudando os outros. Era ali, e só ali, que as fotos deveriam ser tiradas.
Aproveitámos as sombras e a relva para descansar um pouco, o caminho tinha sido longo e o que faltava também não era para preguiçar. O destino era a estranha Torre de Zenhai. Nunca vi nada semelhante.
A Torre de Zenhai, situada no topo do mesmo jardim, é um edifício retangular com cinco andares, de resto, conhecido como o Pagode de Cinco andares e que alberga o Museu de Cantão.
Demos uma volta rápida, guardando tempo para regressar ao hotel, entregar as bicicletas e ir a pé até ao porto.
Não posso dizer que o museu fosse extremamente interessante, especialmente para quem, como nós, não conhece as características da porcelana chinesa e da sua evolução pelas dinastias imperiais. Há um código de motivos e cores que as classifica.
Estão também em exibição miniaturas de casas e barcos, estas em barro, que nos eram mais apelativas.
Regressámos então às ruas, ao enxame, pedalando ao ritmo certo, compassado, disfrutando das ruas e vistas que se nos iam oferecendo.
Entregámos e pagámos o aluguer das bicicletas, fomos ao hotel e pegámos as mochilas já na arrecadação, guardadas para aquele momento e fomos a passo rápido, apesar de termos tempo, para apanhar o barco de regresso.
Quando chegámos à alfândega estava vazia. Estranho! O que se passa? Perguntei ao oficial que ali estava. Ele sorriu e fez-me sinal para esperar. Não falava inglês.
Quando o oficial superior chegou disse-nos logo: “o barco já partiu”. “Como já partiu? Ainda faltam 15 minutos”, e apontei para o relógio.
“Aquele relógio está na hora de inverno, nunca mudamos os relógios, mas é uma hora mais cedo e o barco já partiu”.
No hotel os relógios também estavam na hora do meu. Que desatino!
Deu-me o amoque e dramatizei a sério, “vocês são responsáveis por esta situação! Os relógios estão todos na hora errada, igual à minha, como iria adivinhar? Ainda por cima, com crianças, o que vou fazer?”
O argumento das crianças foi determinante. O oficial fez um telefonema e arranjou-nos um alojamento perto daquele onde havíamos ficado.
Fomos jantar, meio amarrotados por todo aquele contratempo e caminha com eles. Cansados pelo passeio e pelas peripécias, adormecemos calmamente.
Acordámos sem alarme, tomámos o pequeno-almoço e fomos apanhar a camioneta para Macau, ou melhor, Gong Bei, em Zhuhai, às portas de Macau.
Naquele tempo, a maior parte do tempo da viagem era nas intermináveis filas para sair de Cantão, porém, não sei se foi pela hora e direção, quando, de manhã, o maior trânsito era para entrar e não sair da grande cidade.
As três horas de viagem foram sendo calmamente passadas com as cenas que a janela nos ia oferecendo. A paisagem ainda era muito rural, com ovelhas e triciclos a levar produtos agrícolas para algum mercado rural.
Tudo aquilo iria transformar-se a um ritmo como nunca vi. Passados alguns, poucos anos, aquela paisagem rural iria transformar-se em urbana e industrial.
Chegámos à fronteira e, sem dificuldade, passámos para o outro lado das Portas do Cerco, com a inscrição (ou admoestação) A Pátria Honrai que a Pátria vos Contempla.
Poucos metros à frente, os edifícios do bairro Iao Hon, na Areia Preta, todos juntos na imponência dos seus 36 andares, faziam de Macau uma fortaleza do capitalismo.
Poucos anos depois, a fortaleza ficava do outro lado da fronteira.