O (Des)Alojamento Dá à Costa

Quem passa no antigo Bairro dos Bacalhoeiros, na rua Catarina Eufémia, na Costa da Caparica, e pensa nele como um lugar privilegiado para viver, provavelmente tem razão. Mas…

Localizado numa zona central, encontra-se pertíssimo das praias do paredão, do famoso Barbas, e tem um enorme espaço verde na Alameda Cidade da Costa da Caparica.

No entanto, os seus moradores vêem-se agora numa luta que pensavam já não ter de travar, tendo em conta as suas idades e os anos de permanência no bairro.

Este bairro, que se situa nas ruas Catarina Eufémia, Rua Manuel Agro Ferreira e Rua Mestre Romualdo, é composto por 28 casas térreas, 24 das quais se encontram habitadas, as restantes estão devolutas. Os habitantes destas casas que tinham como senhorio a companhia Seguradoras Unidas S.A. viram-se recentemente sem saber a quem pagar a renda, uma vez que a entidade responsável pela gestão do bairro foi alterada sem sequer os informar. Em 28 de Setembro de 2017, os moradores receberam uma carta da Seguradoras Unidas S.A., no sentido de exercerem o direito legal de preferência conferido ao arrendatário, com prazo de oito dias. Contudo, era imposta uma condição: a obrigação de compra da totalidade das 28 casas, o que se traduz no montante total de 1.150.000 euros.

“Recebemos uma carta da seguradora para exercermos o nosso direito de preferência, porque eles tinham um comprador, uma tal de Quandrantábilis, e nós respondemos que queríamos exercer os nossos direitos, mas proporcional à nossa própria área”, explica um dos moradores do bairro, “Foi-nos dito que tínhamos de exercer o nosso direito pela totalidade, ou seja a compra de todas as casas”.

De forma a proteger os moradores e as suas habitações, foi criada a 29 de Outubro de 2017, a primeira Comissão de Moradores da Rua Catarina Eufémia. Por considerarem injusto e não existirem condições financeiras por parte dos inquilinos para a situação proposta, a comissão alerta para a situação social dos cerca de 100 moradores do bairro, invocando a Constituição Portuguesa: “Todo o ser humano tem direito à habitação”.

Só no passado 13 de Dezembro, os moradores foram informados da venda dos prédios urbanos registados na Conservatória do Registo Predial de Almada sob os números 1969 a 1983 com uma comunicação de novo senhorio e indicação de forma de pagamento. A escritura pública de compra e venda foi celebrada a 16 de Novembro de 2017 e os prédios acima referidos, pertencentes à Seguradoras Unidas S.A., foram adquiridos pela sociedade Quandratábilis Unipessoal Lda.

Por sua própria iniciativa, a comissão de moradores já investigara e chegou à conclusão que existiu uma opção de compra da Quandrantábilis Unipessoal Lda., actual proprietária do espaço, sem que fosse dado conhecimento aos moradores desta alteração atempadamente. Esta empresa, criada a 24 de Agosto de 2017, com o objectivo de compra e venda de imóveis, tem como gerente Matthew Aaron Walker.

“Aí começámos a sentir que por detrás disto havia uma especulação imobiliária, de certeza absoluta, bem orquestrada”, suspeita o morador do bairro, “o grave foi um grupo económico que comprou um lote, um terreno, e foi uma situação em que foi vendido sem dar conhecimento aos moradores, é um negócio estranho”.

A Quandrantábilis, com sede em Cascais, e capital social de 1.000.000 de euros, tem como accionista maioritária a empresa MKV Landsbergerstrasse Limited, sediada em Londres e criada em 2014. Esta é uma pequena empresa de imobiliário que nunca fez transacções. O director de ambas é a mesma pessoa, Matthew Aaron Walker, que comprou a empresa Quandrantábilis, em Agosto de 2017, através dum escritório de advogados. “Os escritórios de advogados têm sempre estas empresas operacionais para os clientes quando necessitam de fazer uma transacção, e para não serem eles a aparecer, é sempre uma Unipessoal. Para mim o problema grave que existe aqui, é que não nos foi dado o direito de preferência”, alerta o presidente da comissão de moradores, Francisco Santos.

Embora a comissão ainda não iniciado contactos com a dita empresa e novo senhorio, estamos provavelmente perante mais um caso de gentrificação, sob a forma de “hostel”, acredita quem vive no bairro. Gentrificação, que vem sendo uma palavra bastante familiar hoje em dia, consiste no processo de valorização imobiliária de uma zona urbana, geralmente acompanhada da deslocação dos residentes com menor poder económico para outro local e da entrada de residentes com maior poder económico. A comissão pretende que a Junta de Freguesia, assim como a Câmara Municipal de Almada, dê a atenção devida a esta situação com a maior brevidade possível.

O Notícias da Gandaia foi ao encontro de alguns elementos da comissão de moradores, entre eles, Francisco Santos e Henrique Almeida, numa reunião em que estavam presentes ainda dois elementos representantes do Bloco de Esquerda do Grupo Municipal da Câmara, que estão a acompanhar esta situação, de forma a salvaguardar os habitantes do bairro.

Poder Local

Já foram realizadas Assembleias Municipais com a Câmara Municipal de Almada, onde se discutiu o assunto. “A Câmara tem poderes para poder solucionar isto, não é caso único, já vários casos existiram, é uma questão de vontade política, na realidade, a C.M.A. entender o que é social”, explica um dos moradores deste bairro que prefere não ser identificado por razões pessoais. “Nós temos os nossos objectivos, tivemos de sensibilizar a Câmara para esta situação urgente social que vivemos, pois esta pode actuar em defesa dos mais necessitados”.

“Temos de saber qual é a posição do senhorio. A situação é criar uma estratégia que passa pelo apoio do departamento jurídico da CMA entrar em contacto com o senhorio. O próximo passo da comissão, será “fazer uma acção contra Seguradoras Unidas S.A. e este novo senhorio, a Quandrantábilis, para que nos seja dado pelo tribunal o direito de preferência, porque nós achamos que cada um tem direito a exercer o seu direito à propriedade parcial e não total. “

Francisco Santos, que sempre viveu na Costa da Caparica, mudou-se para o bairro há cerca de 43 anos. Embora esteja reformado, continua a ir para o mar e a ter na arte xávega mais uma forma de sustento. É ainda o director da Associação de Pesca Artesanal e costeira e apoio social aos pescadores. E alerta para o facto de que mesmo que quisessem adquirir a sua parte, “existem também os que não têm hipótese de comprar e aí entra talvez a colaboração da Câmara. A C.M.A. pode muito bem proporcionar um apoio, de maneira a que as pessoas possam adquirir as casas, tendo para isso uma renda mensal de x”. Outro dos moradores completa a ideia, “A C.M.A. pode criar um tipo de financiamento para cada uma das pessoas, de acordo com a capacidade financeira que tenham, com pagamento a uma, duas ou três gerações. Em Lisboa já fizeram isso em habitações de política social.”

Viagem histórica pelo bairro

Como forma de contextualizar o que está a ser posto em causa na realidade de quem aqui mora, é importante recuar às origens do bairro.

Com cerca de 60 anos, o bairro nasce com a Mútua dos Navios Bacalhoeiros, uma companhia de seguros dos bacalhoeiros. A Câmara Municipal de Almada, de forma a desenvolver o turismo nesta área da Costa da Caparica, ofereceu os terrenos ao Mútuo Grémio dos Bacalhoeiros e construiu as casas. Estas funcionavam como segundas habitações, consideradas de veraneio e tinham rendas elevadas.

Há cerca de 43 anos, após o 25 de Abril, a existência Mútua dos Navios Bacalhoeiros deixou de fazer sentido. Nessa altura, foi criada uma comissão de moradores para ocupação destas vivendas como situação social, por pessoas necessitadas. Esta transição foi um processo complicado, tendo havido inclusive intervenção militar para obrigar os moradores a desocuparem as casas, de forma a serem instalados novos inquilinos. “Pessoas necessitadas que viviam mal, em barracas, juntaram-se e fizeram uma ocupação a este bairro. No mesmo dia veio uma força dos fuzileiros e negociou com o pessoal que tinha ocupado as casas. Entretanto a Comissão Administrativa da Junta de Freguesia da Costa da Caparica e a Força de Fuzileiros do Continente uniram-se e abriram inscrições públicas na freguesia para pessoas que quisessem concorrer a uma destas casas. Feita a avaliação por estas forças, a C.M.A. também teve um representante a avaliar as situações mais necessitadas para atribuição das casas”, recorda o presidente da comissão, Francisco Santos. “Na altura foram salvaguardadas duas situações de moradores que faziam desta casa habitação principal e viviam cá todo o ano.”

Assim, as pessoas que já viviam no bairro acabaram por manter as suas habitações, com alguns novos inquilinos foram feitos novos contratos de arrendamento. Todas as intervenções que as casas sofreram foram responsabilidade dos moradores, nenhum dos senhorios que por aqui passou, Mútua dos Navios Bacalhoeiros, Ocidental, Açoreana e Seguradoras Unidas, assegurou qualquer custo das obras que foram sendo necessárias ao longo dos anos.

As casas, por não serem consideradas habitação permanente, não asseguravam certas condições. As casas de banho, por exemplo, foram alteradas para terem água quente, tiveram de ser repostos telhados e renovado o sistema eléctrico. “Tudo o que existe nas casas e a razão pela qual casas estão em pé, fomos nós que fomos sempre mantendo e fazendo obras”, lembra um dos moradores. O problema foi comum entre os habitantes do bairro. “Como as casas não têm alicerces, são só a estrutura exterior, estão em cima de areia e por conseguinte de água, a parte interior, como não tem sustentação, não tem base e abria rachas na parede, pelo que teve de ser feita uma sapata de cimento para sustentar novamente as paredes” explica o mesmo morador, que por razões pessoais prefere não ser identificado.

Futuro incerto

Apesar de todos estes obstáculos, é a este bairro que chamam casa e é aqui que pretendem continuar a morar. Existem casas onde vivem famílias numerosas, com várias gerações, pais, filhos e netos, que se vêem agora nesta incerteza do que estará para acontecer. A maior parte dos moradores são pessoas reformadas, com dificuldades económicas e alguns com problemas de saúde. Sem idade para grandes mudanças e energia para grandes lutas, apenas desejam manter o que é seu, o que sempre conheceram como seu lar.

O que está em causa, segundo um dos moradores, resume-se a, “de um lado temos indivíduos com capacidade financeira a tentarem fazer um negócio de capitalização através de especulação imobiliária e do outro lado estão cerca de 100 pessoas que estão protegidas”. Outro reforça a ideia, “a maior parte das pessoas não têm para onde ir mesmo”, prosseguindo, “nós estamos a defender a posição de cada um, mas também estamos a defender a posição de todos”, afirma um dos moradores do bairro, “Se a câmara não autorizar nenhum projecto para aqui eles não nos podem pôr fora”.

Para já, aguardam a reunião que têm com a C.M.A. ainda este mês, “a ver se arrancamos com esta acção jurídica directamente, para ver se nos dão o direito de preferência”. Apesar de terem seis meses para pôr a acção em tribunal, pretendem resolver a questão o quanto antes, porque admitem que venha a ser um longo processo.

Não é caso único nos dias de hoje, em que cada vez mais são noticiados casos idênticos, principalmente em Lisboa e no Porto, onde o alojamento local é uma espécie de bomba relógio para alguns que, ao expulsar os seus moradores de sempre, abala a história em nome da evolução.

A Gandaia tentou entrar em contacto com a Seguradoras Unidas S.A., mas até ao fecho desta edição não obteve qualquer resposta.

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