Os Cátaros

Em meados do século XII, o Languedoc – uma região rural na província da Occitânia, no Sudeste da França actual – gozava, no horizonte medieval, de uma certa prosperidade propiciada por uma paz razoável.

Tinha-se desbravado a floresta, cultivado novas terras, e a criação de gado teve um grande incremento que atendia às necessidades do povo da região: primeiro as ovelhas, depois as vacas e os cavalos. As ovelhas proporcionavam carne como alimento, a pele, depois de curtida, era utilizada para fazer roupa e pergaminho, e a lã foi a base de uma nascente indústria têxtil rudimentar. Já as vacas e os cavalos, eram utilizados principalmente para a tracção e o transporte.

No campo espiritual, as populações do Languedoc encontram numa religião vinda de longe, do Império Bizantino, conhecida como Catarismo, o alimento para a sua fé.

Os camponeses e os tecelões que, de algum modo, estavam presos à terra, passaram a deslocar-se às ‘vilas novas’ e aos burgos, para lá trocarem e comercia­rem os seus produtos. Estas povoações cresceram em importância e surgiram, então, os mesteres e o comércio e, até, uma nova classe social: os burgenses ou burgueses.  

No castelo de um desses burgos – Saint Gilles –, em 1156, nasceu uma criança a quem deram o nome de Raimundo.  Seu pai, Raimundo V, era o conde de Toulouse.

Com dezassete anos, o jovem Raimundo foi conde de Melguelh, no entanto, contrariamente, ao que era a norma na época, o seu carácter muito refinado, tolerante e pacífico estava mais propenso à poesia e à vida citadina do que às actividades bélicas da cavalaria.

Estas qualidades não eram consideradas virtudes, especialmente, pela Igreja, que rejeitava o crescimento que o Catarismo tinha alcançado na região. Assim, era um dever que o nobre conde impusesse a sua autoridade e a fé a todos os que viviam sob a sua dominação.

Porém, Raimundo, era um homem que respeitava a fé dos outros e até sentia pelos Cátaros alguma simpatia, mesmo não sendo cátaro e acreditando mesmo em ideias muito contrárias às que os cátaros pregavam.

Ele gostava do amor e das mulheres. Teve várias mulheres. Por morte de algumas e porque abandonou outras, tinha amantes, filhos legítimos e ilegítimos. Se isto era escandaloso aos olhos da Igreja, aos olhos dos Cátaros o seu comportamento era uma abominação. Mas, apesar de tudo, ele respeitava-os e protegia-os.

Que religião era essa, que até conseguia agradar a um nobre católico?

É notório que a doutrina do Catarismo se destacava muito da defendida pela Igreja Católica medieval.

Para os Cátaros o homem na sua origem tinha sido um ser espiritual e que, para adquirir consciência e liberdade, precisaria de um corpo material, sendo necessário várias reencarnações para se libertar. Contrariamente ao monoteísmo católico, eles acreditavam na existência de dois deuses, um do bem (Deus) e outro do mal (Satã). Não concebiam a ideia de Inferno, pois no fim o deus do Bem triunfaria sobre o deus do Mal e todos seriam salvos. Praticavam a abstinência de certos alimentos como a carne e tudo o que proviesse da procriação, nem ma­tavam qualquer espécie animal. Jejuavam antes do Natal, Páscoa e Pentecostes. Rejeitavam a penitência, isto é, o perdão dos pecados após o baptismo, e a união marital pela segunda vez.

Os crentes do catarismo podiam livremente abandonar a comunidade quando quisessem e alguns até frequentavam a Igreja Católica. Condenavam o casa­mento, que teria como objectivo a procriação, porém podiam ter filhos. Julgavam os padres desnecessários, pois qualquer leigo poderia realizar um baptismo. Renunciavam aos bens materiais, pregando o retorno ao cristianismo primitivo. Defendiam a igualdade entre homens e mulheres e acreditavam que era preciso primeiro mudar o homem para depois mudar a sociedade. Os Cátaros eram conhecidos pela sua tolerância religiosa pois conviviam nos seus burgos com judeus, pagãos e católicos.

Pode dizer-se que os Cátaros foram, de alguma forma, os precursores de um anarquismo transcendental, pois tinham quase todas as características de uma sociedade utópica, salvo duas — ordem e prosperidade. Com efeito, eles recusavam a ideia de prosperidade devido ao seu arraigado anti materialismo, que tornava mais intensa a busca da pureza, igualdade, fraternidade, justiça e paz; e a ordem terrena não era um objectivo, porque implicava o estabelecimento de uma hierarquia e o uso da autoridade e da força, que eles repudiavam. Devido à sua oposição a estes princípios, os Cátaros não prestavam juramento, que era a base das relações feudais na sociedade medieval.

Entretanto, em 1194, com 38 anos, Raimundo herdou de seu pai o condado de Toulouse e tornou-se senhor de vastos territórios, maiores que muitos reinos da época e mesmo maiores que as terras do próprio rei de França.

Ora, para a Igreja, os Cátaros eram hereges acusados de abalarem a ordem social existente, de aspirarem a destruição da sociedade medieval e, até, da própria da humanidade. Estas divergências levaram o Papa a combater o Catarismo de todas as formas apelando, inicialmente, à cooperação da nobreza regional, da qual, Raimundo era o expoente máximo na região.

Vários delegados papais dirigiram-se, então, para o Languedoc e fizeram diligências junto desses nobres com o propósito da conversão dos Cátaros, porém com resultados pouco expressivos. Um deles, um monge cisterciense, conhecido por ter excomungado vários nobres que se recusaram a obedecer ao pedido do Papa, foi enviado para se encontrar com o Conde de Toulouse, Raimundo VI. Este, respondeu-lhe que não podia perseguir os hereges, porque “Fomos criados no meio deles. Temos parentes entre eles e vemos que levam uma vida de perfeição”. Diz-se que a conversa não foi pacífica e o monge excomungou Raimundo por cumplicidade com a heresia e alegando que o Conde o tinha ameaçado com violência. No seu regresso a Roma, o monge foi morto, supostamente, por um cavaleiro ao serviço do Conde Raimundo.

Assim que teve conhecimento da morte do seu delegado, o Papa apelou à intervenção do Rei de França, ou à intervenção comandada pelo seu filho, para o lançamento de uma cruzada contra os Cátaros. O Rei recusou a sua participação pessoal, bem como a do seu filho, mas sancionou a participação de alguns dos seus nobres.

Um decreto do Papa permitiu, então, o confisco das terras de propriedade dos Cátaros e dos seus apoiantes no Languedoc, pelos participantes da Cruzada, que provocaria um entusiasmo enorme entre a nobreza do Norte da França. Em 1209, um exército mercenário declarou guerra ao vice-condado de Trencavel, que estava sob protecção de Raimundo VI e de Rogério de Trencavel. Derrotado, Raimundo VI, foi forçado a humilhar-se perante a Igreja – teve de desfilar perante a sua família, os seus nobres e o seu povo, em tronco nu, preso com uma trela e chicoteado –, e acabou por perder os seus domínios. As vitórias dos Cruzados saldaram-se, então, por conquistas de cidades, massacres de milhares de pessoas e pela morte de Rogério de Trencavele. O conde Toulouse exilou-se, então, na corte de Inglaterra.

Dois anos mais tarde, Raimundo VI rebelou-se contra a organização das Cruzadas, facto que o levou novamente a ser excomungado. A história do Conde de Toulouse entra no ocaso e o seu filho, Raimundo VII, sucede-lhe e reconquista temporaria­mente a cidade de Toulouse.

A Cruzada Albigense iria prolongar-se ainda durante vinte anos com a derrota dos Cátaros no Languedoc, mas não com a sua aniquilação total.

Foi uma luta em que a função política se tornou muito mais importante que a função religiosa da Cruzada. A defesa da fé passou para um segundo plano; lutou-se para salvaguardar interesses, bens, propriedades ou para usurpar, sob o pretexto de Cruzada, os restos do vencido. Apenas os pobres e os humildes tinham uma fé a ser defendida, a sua única esperança de dias melhores. Foram eles que sofreram realmente as consequências desta guerra terrível sem nada conseguir em seu proveito.

Na senda da vitória da Cruzada sobre o Catarismo germinou, entretanto, algo mais violento e mais duradouro – a Inquisição. Acobertado pela sombra protectora da Igreja, iniciou-se um infame movimento de perseguição e punição de todos quantos, real ou hipoteticamente, fossem acusados de apoiar a heresia do Catarismo.

Durante cerca de seis séculos a Inquisição utilizou a tortura e a pena de morte, que compreendia, empalamento, enforcamento, esquartejamento e a queima na fogueira, para punir os acusados de heresia.

Os Cátaros foram exterminados; o Languedoc foi devastado; os castelos destruídos; as cidades pilhadas; os campos incendiados; por toda a parte só havia ruína, miséria e desolação.

A antiga paz e prosperidade da região tinham-se perdido e pertenciam ao passado.

Reinaldo Ribeiro

28MAI2020

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