Presídio da Trafaria
Como de costume, o Notícias da Gandaia reproduz trabalhos sobre a nossa região. Desta vez trata-se do artigo de Marta Gonçalves Miranda com Foto de Paulo Santos, sobre o Presídio da Trafaria. Pode ver o original clicando aqui. No original, pode clicar na foto para ver mais imagens legendadas…
Edifícios abandonados: o Presídio da Trafaria tem uma história incrível para contar
No concelho de Almada, há um local emblemático na história do Estado Novo. Veja como está hoje e conheça o relato incrível de um dos prisioneiros.
No corredor de celas do Presídio da Trafaria, situado mesmo ao lado do ribeiro da Raposeira, no concelho de Almada, foram julgados, agredidos e privados da liberdade muitos opositores do regime de Salazar. Foi assim até ao 25 de abril, altura em que foram libertados todos os presos políticos e o presídio ficou ao abandono. Mais de 40 anos depois, com exceção de um ou outro fotógrafo mais curioso, ou de um grupo de jogadores de airsoft (espécie de paintball mas com armas de pressão), o complexo está simplesmente ao abandono.
A tinta estalou das paredes, os degraus de madeira começaram a ceder e o pó e o lixo acumularam-se no chão. Também desapareceram as grades das celas, embora não sejam precisas para que os visitantes percebam imediatamente o que é que ali existiu. O que muitos não sabem é que há histórias verdadeiramente surpreendentes — e a de José de Almeida é uma delas.
“Centenas de revoltosos do 18 de janeiro [de 1934] foram concentrados no Presídio da Trafaria, prisão militar situada na margem sul do rio Tejo, em frente à cidade de Lisboa. Ali se realizaram os julgamentos dos presos em processos sumaríssimos, que tiveram lugar numa pequena saleta do presídio, onde apenas cabiam as vítimas e os rafeiros da ditadura — juízes e agentes da PIDE (…) as celas do presídio (…) eram autênticas tocas de animais, sem higiene nem condições para albergar seres humanos.”
As palavras são de José de Almeida, detido no Presídio da Trafaria entre janeiro e abril ou maio (a data não é certa) de 1934. Numa carta de oito páginas enviada a um amigo, Emídio Santana, e que a NiT teve acesso no arquivo do Centro de Estudos Libertários (reúne vários documentos relativos ao período do Estado Novo),o opositor do regime descreve tudo o que viveu naquele presídio — incluíndo a tentativa de revolução que quase o matou.
Mas vamos por partes. José de Almeida foi um operário sapateiro que começou a sua militância anarquista em Coimbra, tinha apenas 14 anos. Até à sua morte em 1962, foi preso dezenas de vezes por atentar contra o Estado Novo. Foi uma tentativa falhada de revolução a 18 de janeiro de 1934, levada a cabo por um grupo de operários na Marinha Grande, que o levou até ao Presídio da Trafaria. Nesse mesmo dia, José de Almeida e centenas de manifestantes foram detidos e julgados de forma apressada, em “sessões” onde só estavam presentes os juízes e agentes da PIDE. Bem, havia mais um elemento da sala: um advogado oficioso que cumpria ordens do regime e pouco ou nada fazia para defender os presos.
“Em cada uma dessas estreitas celas (…) foram metidos três e quatro presos com dois colchões e quatro cobertores, alguns deles infestados de piolhos. A alimentação era detestável, mal confecionada, e à mistura tripas repugnantes ainda com vestígios de excrementos, exalando um cheiro nauseabundo.”
Os prisioneiros foram privados dos seus direitos mais básicos: a correspondência foi violada e roubada pelos guardas, as visitas dos familiares eram sempre curtas e altamente controladas. Chegou a um ponto em que não aguentaram mais — e começaram a preparar uma nova revolução: “Apesar do isolamento penitenciário a que estavam submetidos os presos, de cela em cela circularam manuscritos propondo uma ação comum contra o erro fascista que imperava no presídio.” A comunicação foi assegurada por um grupo restritos de soldados que era contra as condições em que viviam os presos políticos.
A revolta ganhou uma data: 22 de abril, um domingo (dia de receber visitas), enquanto estivessem a ser servidas as refeições da manhã. Infelizmente houve uma fuga de informação, e nesse dias os guardas apareceram fortemente armados. Não foi permitida a entrada dos familiares e amigos dos presos que, segundo José de Almeida, se acumularam às centenas à porta do presídio.
Ainda assim, os presos não desistiram e avançaram com o tumulto. “A revolta surgiu violenta e feroz nas dezenas de celas do presídio, com gritos de ‘abaixo a ditadura’, ‘morra a tirania’ e ‘viva a liberdade’.” Os detidos utilizaram os colchões para se protegerem das investidas da polícia, enquanto agarravam em tudo o que podiam para atirar aos guardas.
O caos tomou conta do presídio. De Lisboa foram enviadas forças da PIDE, da Guarda Republicana e da polícia cívica. Em determinado momento, um tenente chamado Almeida arrancou das mãos de um dos soldados a espingarda e agrediu José de Almeida, que ficou ferido com gravidade.
Não foi o único: não há relatos de mortos, mas nesse dia vários homens foram violentamente espancados. 15 foram considerados “chefes da revolta”, incluindo José de Almeida, e atirados para um “pequeno e repugnante calabouço”. Num espaço sem condições para tantas pessoas, os detidos encostaram a um canto os cobertores cheios de pulgas e fizeram turnos para garantir que estava sempre alguém alerta. José de Almeida não diz na carta quantos dias esteve preso o grupo, mas provavelmente também não sabe. Garante, ainda assim, que pareceram “intermináveis”.
“Numa madrugada, no meio de grande aparato policial”, os 15 presos abandonaram em camionetas o Presídio da Trafaria para a cadeia do Aljube. Mais tarde seguiram para a Fortaleza de São João Batista, na ilha Terceira, nos Açores, mais tarde ainda alguns foram deslocados para o impiedoso Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. José de Almeida foi um deles.
O Presídio da Trafaria recebeu presos políticos até ao 25 de abril de 1974. Os responsáveis pela revolução de 16 de março, por exemplo, foram levados para o complexo, num autocarro escoltado por viaturas militares e pela PIDE. Num artigo publicado no jornal “Público” a propósito das celebrações dos 40 anos da revolução, descreve-se como viviam os prisioneiros: só podiam ver a família uma hora por semana, estavam no edifício mais isolado do complexo e não tinham permissão para falar com outros detidos.
Mas o fim do Presídio da Trafaria estava próximo. “Tem calma ‘pá, não vais passar o teu aniversário [27 de Abril] na prisão”, disse alguém a um dos prisioneiros, cita o jornal. E tinha razão. Na tarde do dia 25 de abril, a tropa de Vendas Novas invadiu o presídio e libertou toda a gente.
Depois do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, onde morreram 32 presos políticos, José de Almeida voltou a ser preso mais algumas vezes. A 5 de outubro de 1959, escreveu outra carta a Emídio Santana, onde revelou que teriam de parar de trocar correspondência por algum tempo — a PIDE estava a instaurar processos contra ele por crime contra a segurança do Estado e traição à Pátria. Só voltaram a trocar cartas em 1962: uma em setembro e outra em outubro.
José de Almeida dedicou a sua vida à luta pela liberdade de Portugal. No entanto, não viveu tempo suficiente para ver o seu País a tornar-se livre. “Decorridos alguns dias, chega-nos um recorte do ‘Diário de Coimbra’ de 9 de outubro de 1962, onde noticiava: ‘Na sua residência, na Avenida Sá da Bandeira, faleceu o Sr. José de Almeida, solteiro, sapateiro, de 70 anos de idade, natural da freguesia de São Bartolomeu. O seu funeral realizou-se ontem para o cemitério da Coitchada’.”