As 3 Vidas de Tarfaya

Tarfaya é uma pequena cidade marroquina com cerca de 6 mil habitantes, situada mesmo em frente às Canárias, capital da província homónima, sendo a cidade marroquina mais perto do início do território Sarauí.

Foi também um centro do antigo protetorado do Sahara Espanhol, quando Tarfaya se chamava Villa Bens que terminou em 1975, ou seja, ao mesmo tempo que terminou a nossa história colonial. Só que Ceuta e Melilla ainda se mantêm espanholas, enquanto que a nossa terminou mesmo.25

Foi também a partir de Tarfaya que a 6 de novembro o rei marroquino Hassan II organizou a “Marcha Verde”, uma impressionante manobra política pacífica, que envolveu cerca de 350 mil pessoas que reclamavam para o seu reino a totalidade do território que fora o tal Sahara Espanhol e, até ver, com êxito.

Presentemente, Tarfaya dispõe de um grande porto de pesca, largas avenidas e, claro, a Casa Mar e o museu Saint-Exupéry. É também o centro administrativo das inúmeras eólicas implantadas ao longo da Estrada Nacional 1, até Laayoune – ou El Aayoún – a capital do Sahara Ocidental.

Apesar de ser bastante pequena, a cidade tem muito movimento, principalmente da responsabilidade do seu porto de pesca, a modos que internacional, com controlo de passaportes à porta e tudo o mais que caracteriza um posto fronteiriço.

Na rua principal, cheia de restaurantes, cafés e mercearias, além de duas mesquitas e uma nova ainda em construção, há sempre um rodopio de gentes, mesmo quando o muezim chama à oração. Infelizmente, esse apelo que antigamente caracterizava as qualidades canoras de cada muezim, é agora feito por uma gravação igual em todas as mesquitas salvo raras e honrosas exceções.

Nesta avenida principal, que desemboca nas amplas instalações portuárias, estão sempre a fumegar as carvoadas, do peixe grelhado às inescapáveis tajines. Além de algumas esplanadas dedicadas ao chá e ao café. Lá dentro, imperam os grandes ecrãs com futebol. Mas não tem camelos. Nem um. Na verdade, nesta viagem foi a única cidade sem camelos para alugar.

O ferribote Assalama encalhado perto de Tarfaya

Além destes atributos vagamente turísticos, um pouco mais a sul, está o que resta de um navio de passageiros, o Assalama, naufragado em 2008. Trata-se do navio que fazia a carreira de Tarfaya para Fuerteventura, uma das ilhas das Canárias. Este ferribote pertencia à Naviera Armas, o armador espanhol, e nesta fatídica viagem transportava 113 passageiros e 30 tripulantes.

Neste naufrágio, para evitar uma tragédia e de forma a evacuar passageiros e alguns dos seus pertences, foram arregimentados os barcos de pesca locais, junto com a marinha marroquina, que trabalharam noite dentro. Porém nunca viram um euro de indemnização pelo seu trabalho, nem tiveram lugar indemnizações pelo prejuízo nas pescas devido ao derrame de 80 mil litros de fuelóleo.

A verdade é que os principais pontos turísticos de Tarfaya não é nenhum daqueles que fui descrevendo. Pode-se mesmo defender que tenho estado a “encanar a perna à rã”, mas não a fazer os meus (ávidos) leitores perderem tempo. Isso nunca, pois o tempo é o bem mais precioso de qualquer ser humano. Ou ser vivo, mesmo contando com os “cadáveres adiados que procriam”.

Comecemos pelo Museu de Saint-Exupéry, um pavilhão que documenta a estadia do famoso piloto e autor francês Antoine de Saint-Exupéry, que foi chefe de escala da Aeropostale na rota Toulouse-Saint Louis, no Senegal e aproveitou os 18 meses dessa sua estadia para escrever o seu romance “Correio do Sul”.

Curiosamente, fazia parte das suas tarefas a negociação com as diferentes tribos locais para a libertação de pilotos e aeronaves que aterravam, por acidente, distração ou aselhice. Estávamos em 1927-28 e é um bom ponto de comparação com o que aquele território era e o que é agora.

Quanto ao museu propriamente dito, está fechado. Calma, fechado mas com um cartaz que tem o número de telefone do seu funcionário, que acorre prontamente e começa por nos levar à respetiva loja, como objetos alusivos e preços avantajados.

Pelas paredes podemos apreciar grandes pósteres que ilustram a história da Aeropostal – não é em vão que este museu é patrocinado pela Airbus e pelo município de Toulouse. Estão miniaturas dos aviões usados pela empresa e constitui uma agradável visita, uma janela para outros tempos que, não sento distantes, constituem um mundo distante mesmo.

O guarda/tesoureiro/vice-presidente da associação é muito simpático e até insistiu em tirar fotografias. Só que tirou com o telemóvel dele e lá ficaram as fotos. Nós, que não nos apercebemos do disparate, avisamos agora, para que os leitores que o visitem no futuro, não cometam o mesmo engano.

Finalmente a Casa Mar.

Só o nome já é fortíssimo, mas a história ainda é melhor.

A atual Tarfaya, como dissemos lá atrás, durante o tempo do protetorado do Sahara Espanhol, chamava-se Villa Bens (do governador Francisco Bens), mas há sempre antecedentes. Sempre.

Placa ainda visível na Casa Mar

Ora em finais do século XIX, a Companhia da África do Noroeste, era propriedade do escocês Donald Mackenzie, que, fundou aqui um entreposto, após negociar com as tribos locais. As tais com quem, quase meio século depois, Exupery também negociou. Este entreposto, para agradar à coroa britânica, foi batizado em 1879 como Port Victoria, o nome da rainha vigente.

Como marco deste período do entreposto ainda se mantém – orgulhosa – a Casa Mar, construída num afloramento rochoso, acessível na maré vazia, e que se pode ver na foto acima. Está também ainda visível a placa comemorativa, datada de 1882, com os nomes dos responsáveis da companhia proprietária, porque este apego à iniciativa privada não é coisa recente.

Como se sabe, estes acordos entre tribos locais (sarauís) e tribos empresariais têm dias contados, e nem sempre são os que constam no acordo. O facto é que essas tribos solicitaram a ajuda do sultão Hassan I que acabou por comprar o entreposto.

Em 1912 os espanhóis negociaram a posse da região. Com o sultão? Não. Com os franceses, que era quem na altura controlavam efetivamente os assuntos de Marrocos.

É certo que nesse tratado hispano-francês de 27 de novembro de 1912 a Espanha se comprometia a entregar esses territórios a Marrocos quando terminasse o protetorado.

Mas, claro, foi necessária uma dose substancial de violência, e mais 20 anos em cima, para que os nuestros hermanos honrassem o acordo e desamparassem a loja ao então Rei Hassan II.

 

 

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